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O Invisível Custo da Desconfiança Jurídica

No primeiro post publicado quando do lançamento bLex, apresentei em linhas gerais os motivos pelos quais acredito na necessidade de um tratamento jurídico mais equilibrado e justo em relação ao capital produtivo ético. Naquela oportunidade eu afirmei que “Ao invés de criar um sistema para combater eficientemente os abusos, é mais fácil para o Estado presumir que o abuso ocorrerá sempre que possível. Portanto, cria-se um conjunto de regras que dificulta a atuação do inescrupuloso, mas também engessa os negócios do empresário ético.

Esse é o tema que retomarei hoje. Uma análise sóbria do nosso sistema jurídico evidencia que a desconfiança é um elemento integral de sua construção. Nosso universo normativo presume que ilegalidades ocorrerão e busca as dificultar mediante implementação de mecanismos de controle. Apenas à guisa de exemplo:

  • Para evitar que o promotor se mancomune com o réu e arquive indevidamente procedimentos administrativos, a decisão de arquivamento será sempre revisada por um órgão hierárquico superior;
  • Para evitar que contratos administrativos não sejam cumpridos, ou que sejam vencidos por empresas incapazes de executar o seu objeto, o procedimento licitatório exige farta documentação dos licitantes;
  • Para evitar que os administradores públicos violem suas obrigações de moralidade e probidade, o Tribunal de Contas pune tanto erros materiais quanto formais;
  • Para evitar que advogados públicos beneficiem a parte que litiga contra o Estado, este é quase sempre obrigado a apresentar defesa e recursos, mesmo quando tem certeza que ex adverso está pleiteando um pretensão justa, correta e razoável; não fosse suficiente, se a Fazenda Pública for vencida nas lides, o feito é ao reexame pela instância superior mesmo que não haja recurso nos autos;
  • Para evitar que o privado trapaceie o fisco, constrói-se um sistema onde todas as presunções militam em favor do fisco, e todos os ônus recaem sobre o contribuinte.

À primeira vista pode parecer conceitualmente correto criar mecanismos redundantes que presumem que a prática de ilícitos ocorrerá e, portanto, os dificultem. Afinal de contas, se com todos os controles hoje existentes, a prática de corrupção é tão arraigada em nosso país, imagine como seria se tais freios não fossem uma parte integral do sistema?

Essa é uma visão absolutamente míope e idealista da realidade. Uma observação mais cuidadosa leva a perceber que tais mecanismos, na melhor das hipóteses, tem mais custos sociais do que benefícios. Na pior das hipóteses, esses instrumentos são tão desproporcionais que, numa perversa subversão da ordem natural das coisas, acabam fornecendo meios para que se pratique a corrupção.

Veja o caso do Ministério Público (lembrando que minha experiência com tal órgão não inclui suas atribuições na esfera criminal comum). Imaginem quantos processos judiciais são movidos apenas por “dever de ofício”, nos quais o próprio promotor tem consciência que não há a mínima possibilidade de condenação. É gasto dinheiro público com o tempo do promotor para preparar a ação, dinheiro público com o tempo do judiciário para distribuir, autuar, guardar, manter, instruir e julgar o feito em primeiro grau, dinheiro público com o tempo do promotor para recorrer, do tribunal para julgar, do procurador para recorrer, do STJ para julgar… Isso tudo a troco de que?

Mesmo sem falar da quantidade absurda de recursos privados que é desperdiçada na defesa dessas ações improsperáveis, o repetido manejo dessas ações “por dever de ofício” não só entope o judiciário como também causa o Ministério Público a se tornar uma instituição ineficaz: tendo que lidar com centenas ou milhares de ações, o promotor não tem tempo para se dedicar com afinco àquelas que são realmente importantes. Resultado? Por conta do excesso de trabalho causado por essas pequenas ações de irrazoável custo x benefício social, o MP tem dificuldade de obter condenações nos casos relevantes. Quem sai perdendo com a baixa taxa de sucesso do MP é a própria sociedade.

Algo similar acontece com a advocacia pública. Um de nossos participativos leitores fez a seguinte contribuição em um post anterior:

Trabalho na advocacia pública e é importante que os advogados privados compreendam uma coisa: interpor ou não um recurso quase nunca é faculdade do agente que atue como advogado ou procurador. Muitas vezes o bom senso tem de ser deixado de lado porque não se sabe se lá adiante será nomeado um corregedor imbecil (sim, isso é possível) que irá complicar a vida de quem não recorreu.

Um sistema que força um profissional decente e ético que deixe o bom senso de lado com medo de um eventual e futuro corregedor imbecil é realmente ultrajante, especialmente se tal atitude implicará em desperdício de dinheiro público, tanto do lado do Estado-Parte, quando do lado do Estado-Juiz. Mais uma vez, se o Estado-Parte pudesse simplesmente reconhecer que estava desde o início do processo, toda a sociedade sairia ganhando, pois o próprio Estado-Parte teria mais tempo e recursos para se defender naquelas causas que realmente comandam a sua atenção.

Eu espero que algum dia algum doutorando faça a análise de quanto tais ações manejadas “para cumprir o protocolo” custam à sociedade. Desconfio que oneram mais o contribuinte do que as ilegalidades que pretendem dificultar (que, aliás, como se verá ao final, podem ser resolvidas de outras maneiras).

Em outros seguimentos, a desconfiança jurídica é tão desproporcional é ela própria que viabiliza a prática de atos de corrupção. Vou dar apenas dois exemplos: A lei de licitações é tão cheia de arapucas e armadilhas, que ela serve para que o administrador corrupto direcione quem vai ser vencedor. Já vi licitante ser desclassificada por todo tipo de bobagem, como questões documentais formais. Todo mundo que atua de forma séria na área administrativa fica preocupado quando é necessário submeter amostras à comissão de licitação, pois sabe que, querendo, ela pode realizar um julgamento absolutamente subjetivo sobre quais delas estão ou não a contento. Em suma, as próprias restrições e formalidades da Lei 8.666 viabilizam em grande parte as traquinagens que circundam essa área do direito administrativo.

O segundo exemplo diz respeito ao poder que o direito tributário dá ao fiscal. As presunções pró-fisco e os ônus processuais que oprimem o contribuinte que quer questionar uma autuação ilegal em juízo dão poder ao fiscal corrupto para achacar o contribuinte, para quem o pagamento da propina passa a ser uma opção mais viável do que combater a ilegalidade. Aliás, em alguns casos tais como na hipótese de importadores, a nova lei de Mandado de Segurança faz do empresário um refém absoluto de qualquer arbitrariedade que o fiscal queira cometer.

De fato, essa cultura de desconfiança generalizada é prejudicial à sociedade e à economia brasileira.

Mas isso tem solução?

Acredito que sim.

Seria ingênuo propor um sistema baseado simplesmente na confiança. Se alguém sabe que não tem a quem responder, é absolutamente natural que passe a cometer abusos. Isso é, infelizmente, parte da natureza humana.

Na minha humilde opinião, a solução está num provérbio russo: Confie, mas verifique.

Eu até adicionaria: Confie, mas verifique e puna rigorosamente quem violar essa confiança.

Um sistema ideal há de se concentrar não no engessamento de toda e qualquer atividade que possa remotamente parecer como irregular, mas sim na severíssima punição de quem abusa a confiança que lhes é dada.

Tenho um cliente, executivo de uma multinacional, que já trabalhou como expatriado fora do Brasil. Toda vez que tem a oportunidade, esse cliente fala de sua experiência com licitações em outros países. Fala sempre de uma vez onde ele se apresentou para a licitação com apenas dois pedacinhos de papel: Uma proposta de preços, e uma fiança bancária no valor do contrato, em favor da administração. Era só isso que a licitação exigia. Nada de análise de documentação pela administração, nada de habilitação, nada de formalismo. Só a proposta de preços e uma fiança dada por uma instituição financeira que garantisse os interesses da administração caso, por qualquer motivo, a contratação tivesse problema. É claro, o banco tomou todas as precauções possíveis para saber se a empresa tinha condições de realizar o serviço para o qual estava sendo contratada, mas isso não aconteceu num jogo de pegadinhas, tal como ocorre com a nossa Lei de Licitações.

Os parâmetros da contratação estavam meticulosamente descritos em documentos fornecidos pela administração, e a contratação já previa a nomeação de terceiros neutros externos que tinham a função de rapidamente arbitrar quaisquer dúvidas, divergências ou litígios entre a empresa contratada. Se a empresa pisasse na bola, e os árbitros concordassem, a administração poderia receber de volta tudo o que gastou simplesmente descontando a fiança bancária. É um sistema que não se baseia na desconfiança, mas confiança abalizada por garantias (o que é diferente). É um sistema que não apenas funciona, mas funciona de modo eficiente. Agora pergunte: onde há mais corrupção? No sistema descrito, ou na desconfiada Lei 8.666? A resposta é evidente.

O mesmo princípio pode ser aplicado ao MP ou ao advogado público. Como profissionais éticos e honrados, merecem liberdade para decidir quando há o custo x benefício social de manejar ou não certa ação, ou oferecer ou não defesa ou recursos. Se essa confiança for abusada, que o dito profissional seja não apenas demitido, mas preso ou de outro modo exemplarmente punido.

O único inconveniente à implementação de um sistema de “confiança verificada” é que exige do Estado que dedique recursos ao combate dos excessos. Um sistema desses só pode ser colocado em prática se quem violar a confiança correr um sério e real risco de ser duramente punido. Acredito que o ônus que o Estado teria para combater os excessos seria facilmente compensado pela expurgação das ineficiências atuais. Mas, de fato, implicaria não apenas numa alteração da nossa cultura sócio-jurídica, como também no aparelhamento de um sistema repressor mais atuante e eficiente.

Punir só quem comete abusos dá trabalho mesmo. É mais fácil desconfiar de todo mundo, mesmo que custe mais caro.

5 comments to O Invisível Custo da Desconfiança Jurídica

  • Marcos dos Santos Carmo Filho

    O Estado demonstra tamanho medo de ilícitos que acaba não conseguindo dar um passo sem exigir um calhamaço de documentos e consultar 5 órgãos. Realmente é uma perda de tempo e dinheiro.

    Assim como na saúde, prevenir a prática de irregularidades é melhor do que remediar. Mas não é porque você está correndo o risco de pegar gripe aviária que seria sensato viver carregando um tanque de oxigênio.

    Marcos.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Marcos,
    O colega Eddington Rocha citou uma frase, num comentário doutro post, que tem perfeita aplicação no tema debatido: “No Brasil, existe o hábito de matar a vaca para resolver o problema de carrapato.”
    De fato, a prevenção racional e razoável é necessária. Mas também é fato que nosso sistema atual – que é muito pouco eficiente na repressão – acaba mesmo é exagerando na profilaxia.

  • Ricardo Adv

    Acrescentaria mais uma lista de desconfianças.

    Pra evitar que o advogado fique com o dinheiro do cliente, na Justiça do Trabalho, em algumas varas, os alvarás saem separados, em nome do empregado e do advogado (20%);

    Pra evitar que o advogado engane o cliente e receba dinheiro da empresa para diminuir o acordo, ou seja, traia o empregado, uma determinada juíza do trabalho não homologa acordos inferiores a 30% do pleito.

    Este último caso ocorre demais e é uma vergonha!!

  • Assino em baixo

    Concordo com todas as afirmaçoes do Ricardo Adv, mas considero a mais imoral de todas quando um colega de trabalho nos procura pra “tentar” um acordo mediante a negociação de seus honorários. Em suma, só porque o meu cliente era estrangeiro e magistrado (no seu país de origem), as cifras “pularam” do olho do colega que não logrou êxito com a “tentativa de acordo”, muito menos com a ação ajuizada pelo o mesmo.

    Parabéns Dr. Daniel pela excelênte matéria.
    Nilze.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Ricardo e Nilze,
    Ambos estão corretos e só comprovam meu argumento. Num país sério, um advogado só engana seu cliente uma única vez. As regras das diversas Ordem dos Advogados norte-americanas, por exemplo, exigem que o advogado mantenha contas bancárias separadas para o dinheiro do profissional/escritório e o dinheiro do cliente. Simplesmente depositar dinheiro do escritório na conta dos clientes, ou vice-versa ( o que lá é chamado de “comingling of funds”) é causa suficiente para que o advogado seja suspenso. Veja bem: para que essa infração ética ocorra, nem é necessário que se utilize o dinheiro do cliente. Basta misturar o dinheiro do cliente com o do advogado numa mesma conta bancária. Faça isso e serás suspenso.
    Se, por outro lado, o advogado ficar com (ou mesmo “pegar emprestado”) o dinheiro do cliente, é expulsão na certa.
    Nesse cenário, não há necessidade das Cortes ficarem produzindo regras com o objetivo de proteger o jurisdicionado, pois o tipo de profissional que faz esse tipo de coisa não dura muito tempo na profissão. Como a repressão aos abusos funciona, não há necessidade de medidas preventivas desproporcionais.
    Aqui, como o sistema de repressão a abusos a advogados pilantras não funciona corretamente, é substituído por uma sistema preventivo desmedido, que afeta de igual modo o probo e o bandido travestido de advogado.

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