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Quis Custodiet Ipsos Custodes? (Parte I)

O Ministério Público cumpre papel relevantíssimo em nosso sistema jurídico-constitucional. A essa instituição essencial de nosso Estado Democrático de Direito foi delegada a elevada missão constitucional de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. O Ministério Público é uma daquelas figuras que ainda inspira respeito na população brasileira, até por conta da exposição de mídia de suas ações e do perfil público de muitos dos réus de suas demandas.

Mas é aí que reside a minha primeira preocupação com o agir do digno parquet: por vezes parece que sua atuação judicial é arquitetada como um espetáculo para o grande publico, e não com o objetivo técnico de obter as condenações requeridas.

Antes de continuar, quero fazer duas ressalvas. Primeiro, que respeito imensamente a instituição do Ministério Público. Todo cidadão brasileiro tem o dever de reconhecer que o MP é responsável pela mudança de paradigma que o país vem sofrendo lentamente nas últimas décadas. Se a impunidade tem diminuído neste país, e todos desde juízes corruptos a políticos inescrupulosos temem a Justiça, é por conta da atuação ministerial. Não fosse o trabalho incansável do MP nas últimas duas décadas, um caso como o do Mensalão seria impensável neste país. Em segundo lugar, devo dizer que não tenho absolutamente nenhuma experiência com a atuação criminal comum do parquet. Nunca advoguei na seara do crime (exceto em casos de crime ambiental e crime eleitoral) e por isso não tenho exposição alguma à desenvoltura do Ministério Público em persecuções criminais comuns. O contato que tenho com a atuação do MP é em ações civis públicas, ações de improbidade administrativa e em feitos eleitorais.

Dito isso, como advogado militante e cidadão, tenho a percepção que o Ministério Público poderia tanto agir com maior eficiência, quanto com maior responsabilidade.

A ineficiência do parquet é fruto de uma legislação mal desenhada e não dos homens e mulheres de bem daquela instituição que cumprem com afinco seu dever profissional. É obrigação funcional do promotor de Justiça, a grosso modo, defender a sociedade e combater ilegalidades. A legislação atual não permite que os promotores e procuradores aceitem como verdadeiro um fato inescapável da vida: existem mais ilegalidades do que promotores para combatê-las. O fato é que o promotor de justiça que levar a ferro e fogo suas obrigações funcionais, e perseguir demanda contra absolutamente todas as ilegalidades– grandes ou pequenas – com as quais se deparar, logo ficará assoberbado de trabalho e não dará conta de se dedicar a todos os feitos. Assim, os feitos serão ajuizados, mas ou ocorrerá prescrição, ou os fatos não serão apurados com presteza, e o órgão ministerial se verá materialmente impossibilitado de empregar os esforços necessários para obter sucesso em cada uma dessas demandas.

Como advogado, acho isso fantástico. Às vezes o Ministério Publico está correto nos fatos que articula na inicial, mas claudica ao tocar o feito de forma incompleta e sem a atenção que mereceria. Ao instruir pobremente o feito – fazendo o que pode com o pouco tempo que tem – o promotor deixa de cumprir corretamente seu papel acusatório, e nessa situação, a saída justa é a absolvição do réu. Como cidadão, acho um absurdo que o dinheiro público – que mantém não apenas o Ministério Público, mas também a máquina judicial por ele movimentada – seja desperdiçado em ações que funcionam para aparecer na mídia e expor o réu à execração pública, mas que por deficiências do próprio órgão ministerial, jamais cumularão na tutela jurisdicional pretendida.

E é o auto-imposto excesso de trabalho do Ministério Público que causa isso. O dia tem um limitado número de horas e existe uma restrição do que é possível fazer com essas horas. É possível se dedicar com profundidade a alguns casos, ou superficialmente para muitos. O problema é que, quando o defensor da ordem jurídica trata seus casos superficialmente, quem sofre é o bem comum.

Repito que isso é defeito da legislação, que não permite ao Ministério Público arquivar procedimentos procedentes em teses, mas de menor importância. Instaurado o inquérito civil da ação civil pública, por exemplo, o promotor só pode arquivar o procedimento se constatar “inexistência de fundamento para a propositura da ação civil” e ainda assim sua decisão será revisada por órgão administrativo superior. Não é dado ao promotor arquivar o feito que, apesar de procedente em tese, não atende a uma análise custo x benefício social.

Nesse ponto, melhor seria que o Ministério Público tivesse a liberdade que é assegurada a seu contraparte norte-americano, que faz um efetivo juízo discricionário sobre quais ações perseguir, mas que tem seu desempenho medido por produtividade: quantas ações promoveu, e qual o seu percentual de sucesso. Afinal o que é melhor? Promover 100 ações e obter 10 condenações, ou promover 20 ações de qualidade e obter condenações em 17? Se o Ministério Público trabalha para a mídia e para o grande público, a primeira alternativa é preferível. Se trabalha para os fins de Justiça, sua escolha há de ser a segunda.

Nota: Este é um post de três partes. Na segunda parte do post, continuaremos o texto, debatendo a questão da responsabilidade do Ministério Público em relação aos processos que promove.

4 comments to Quis Custodiet Ipsos Custodes? (Parte I)

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Caros Amigos,

    Ainda estou aprendendo a lidar o programa de blog. Ao atualizar este post para incluir o link à segunda parte, consegui apagar o post original e todos os comentários a ele vinculados. Depois de alguma dor de cabeça, consegui recuperar o post orginial (graças, em parte ao cache do google) mas não consegui recuperar os comentários. Lembro que o Ney, a Dra. Evelise e o Dr. Luis fizeram comentários pertinentes. Peço desculpas a eles e a todos os leitores, e tomarei mais cuidado para o mesmo erro não aconteça no futuro.

    Daniel

  • Mário Nogueira

    Mesmo com atraso quero deixar o meu “Parabéns a você” (apesar tê-lo feito por telefone na data correta) ao amado sobrinho, que em 01/09 completou mais um ano.

  • [...] como fruto da virtual irresponsabilidade legal do promotor quando acusa (tema que já foi debatido aqui e aqui ). Mas não é este o caso, pois não é só o Ministério Público que está terceirizando [...]

  • [...] já foi tema de posts do bLex (numa série de posts ainda incompleta, iniciada aqui e aqui) que por várias razões, hoje o Ministério Público joga mais para a arquibancada do que [...]

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