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Acautelo-me

Trata-se, sem dúvida, de situação comum na prática forense. O advogado pleiteia uma liminar e o julgador despacha com um singelo e lacônico “acautelo-me“.

O dito acautelamento repete-se costumeiramente nas liminares específicas de MS, possessórias, cautelares etc., além da liminar genérica prevista no art. 273 do CPC (antecipação de tutela).

A grande questão que surge nessa situação é a de que o autor não teve deferido seu pedido, tampouco o teve negado, ao menos não na forma adequada que lhe permitiria o prolongamento da jurisdição, através do recurso adequado.

Sem dúvidas, do ponto de vista processual, ao afirmar que se acautela no deferimento da liminar, o magistrado está indiretamente indeferindo-a, pois o bem da vida buscado pela parte não lhe está sendo ofertado. Assim, desde logo possível é a interposição do recurso cabível, mas essa interposição será anômala.

Digo isso porque recurso, no ordenamento pátrio, busca em regra o prolongamento da jurisdição através da revisão de uma decisão judicial por um órgão hierarquicamente superior. Não é isso o que, verdadeiramente, ocorreria nesta hipótese, visto que o Tribunal não estaria revendo decisão, já que não há prestação efetiva de jurisdição no juízo monocrático, mas sim atuaria como juízo de primeiro grau, conhecendo a matéria pela primeira vez.

É certo que no referido recurso, o recorrente se ateria a repetir os argumentos da exordial, sem qualquer contraponto, visto que a decisão recorrida não os enfrentou como deveria.

De outro lado, há ainda outros dois pontos emergem desta hipótese, sendo exatamente este o objetivo deste post.

O primeiro reside no fato de que ao magistrado não é permitido se acautelar de nada: ou ele defere a liminar (entendendo que os requisitos legais estão presentes) ou a indefere ( por entender que não estão, ainda que por ora, presente), sendo certo que numa e noutra hipótese tem a obrigação constitucional de se manifestar expressamente sobre o pedido (princípio da inafastabilidade da jurisdição) e fazê-lo de maneira fundamentada (princípio da fundamentação das decisões).

O “acautelo-me”, viola no mínimo um dos princípios indicados (creio eu que viola ambos), pois das duas uma: i) ou não diz nem sim nem não, e assim deixa de resolver o litígio liminar posto sob sua apreciação; ou ii) diz não, sem apresentar, contudo, qualquer fundamentação, obrigando a parte a aguardar sua manifestação – quando assim ele resolver proceder – ou a interpor imediato recurso, buscando reformar decisão que não sabe em que está lastreada.

De se destacar que ao magistrado, enquanto agente estatal da prestação de jurisdição, não é dado o juízo discricionário se a presta ou não. Trata-se do exercício de um poder-dever, que sempre que devidamente provocado (respeitadas as condições da ação e os pressupostos processuais) deve ser prestado.

Em suma, se o magistrado entende que faltam elementos para o deferimento da liminar, que assim se manifeste de maneira expressa, afirmando os fundamentos de tal entendimento; caso contrário, tem o dever de deferi-la.

O segundo ponto que gostaria de levantar refere-se à estratégia jurídica a ser adotada pelo advogado ao se deparar com tal situação (que como já dito, repete-se diuturnamente). Qual seria o melhor caminho a ser seguido? i) aguardar a boa vontade do magistrado em enfrentar tal pedido e impor ao cliente o fardo de aguardar a morosa prestação jurisdicional; ou ii) interpor imediato agravo de instrumento para que haja o enfrentamento pelo Tribunal de Justiça?

Indiscutível, que ambas as hipóteses possuem seus “contras”. Sentar e aguardar não apenas pode gerar um dano irreparável ou de difícil reparação ao jurisdicionado, como o levará uma descrença na Justiça e no trabalho do advogado. De outro lado, interpor agravo de instrumento (com uma função anômala, conforme defendido) pode fazer com que seja queimada uma etapa, visto que verdadeiramente não houve enfrentamento da matéria pelo juiz monocrático, que poderia até mesmo deferir a medida futuramente.

Sem a pretensão de estar certo, tenho optado por um caminho alternativo, interponho embargos declaratórios, por omissão, visto que não houve o enfrentamento expresso de meu pedido (jurisdição), e pelo fato de que não há fundamentação em uma decisão que se atem ao acautelamento.

Busco, portanto, através dos embargos, compelir o magistrado a exercer sua obrigação, qual seja, de prestar jurisdição ao meu cliente. É certo que não pode ser desconsiderado o risco de que tal medida pareça antipática aos olhos do magistrado. Contudo, o advogado que tenha receio de incomodar magistrados com a defesa dos direitos de seus clientes deve realmente procurar outra profissão.

3 comments to Acautelo-me

  • Adriano

    Essa prática do “acautelo-me” é tão comum, o Dr. tá dizendo que não tem autorização na leu para fazer isso? E os usos e costumes, como ficam?

  • Ney Bastos

    Caro Adriano,

    Não apenas não há previsão, como há vedação expressa, conforme defendi em meus post. Quanto aos usos e costumes, destaco que se tratam de instrumentos integradores da norma, ou seja, na ausência normativa elas servem para solucionar determinado caso concreto, jamais podendo ser utilizadas de maneira contrária ao ordenamento pátrio, sobretudo,previsões constitucionais como a do caso discutido.

  • Jean Carlos Tourinho

    Genial. Vocês realmente são todos advogados muitos competentes. Eu NUNCA teria encarado o acautelo-me como um problema se não fosse este comentário. E além disso você propõe soluções. Como o colega anterior disse, a prática é tão arraigada que nós acabamos acreditando inconscientemente que é uma opção do juiz e desembargador fazer isso. O bLex está provando que é uma fonte rica de provocação do nosso pensamento.
    Obrigado!!!

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