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Direito Pretoriano

Nota: Como estava viajando esta semana, ainda não tive tempo de comentar as quatro novas súmulas publicadas pelo STJ em 01/09. Espero postar meus comentários sobre as mesmas até amanhã à noite. De qualquer modo, acho que antes de comentar as Súmulas do STJ, seria oportuno expressar a minha opinião sobre o “Judge-Made Law”.

Há alguns anos, quando discutia minha tese sobre a construção e a observância do Direito Pretoriano com colegas processualistas sempre observava mesma reação: diziam que eu estava muito contaminado pelo direito norte-americano e o que eu almejava era a implementação do stare decisis num sistema de direito romano que, por desenho, é incompatível com um sistema precedencial.

Nas minhas discussões com meus letrados e estudiosos colegas, o que eu mais ouvia é que o juiz tinha que ter liberdade para decidir de acordo com a sua consciência, independente da jurisprudência dominante: não importava que determinada questão jurídica estivesse uniforme e pacificamente resolvida no Supremo Tribunal Federal, pois o Juiz substituto em estágio probatório de Santo Antônio do Içá precisava da liberdade para aplicar entendimento diverso aos casos concretos sob sua jurisdição.

Sempre achei essa uma das maiores aberrações jurídicas do nosso Estado Democrático de Direito. Na minha concepção o que importa mais do que a poética liberdade absoluta dos julgadores é a segurança jurídica do jurisdicionado. O Estado de Direito – por conta do Devido Processo Legal Substantivo (e seus consequentes postulados de Razoabilidade e Proporcionalidade) – pressupõe que as regras jurídicas devem ser conhecidas de antemão. Noutras palavras, o cidadão tem o direito de ser informado sobre quais são as regras do jogo antes de tomar decisões relevantes. É dai que nasce a proteção do ato jurídico perfeito e do direito adquirido contra ulteriores alterações do direto positivo. Quanto maior deve ser essa proteção quando se lida com o direito pretoriano, que não se sujeita à estrutura própria do processo legislativo.

É obvio que existem situações fáticas em que não há pronunciamento jurisdicional sobre o caso concreto. A atividade (e criatividade) humana é extensa demais para ser codificada à exaustão. Existem casos não foram ainda apreciados pelas Cortes. Nessas situações, o advogado diligente pode informar a seu cliente a sua opinião sobre o assunto, mas deve fazer a ressalva de que tal parecer não tem esteio jurisprudencial, devendo ainda apontar as interpretações razoáveis que o Judiciário pode dar àquele conjunto de fatos. Nesta hipótese, a inexistência de precedentes faz parte da análise de risco do cliente. Situação absolutamente diversa se configura se houver, por parte do Judiciário, entendimento assentado sobre o tema. Nestes casos, o advogado pode informar ao Jurisdicionado quais a regras com as quais precisa trabalhar.

No meu entendimento, quando um juiz monocrático se depara com um daqueles casos que, à luz do direito positivo, admite mais de uma interpretação razoável deve – antes de procurar o seu próprio entendimento sobre o tema – olhar para cima. Deve descobrir qual a posição dos tribunais a que está vinculado (TJ do seu Estado, STF e STF, no caso de jurisdição comum).

Se existente JURISPRUDÊNCIA nessa estrutura, deve ser respeitada e seguida pelo Magistrado, em respeito à segurança jurídica do jurisdicionado. Afinal de contas, o Direito da parte não pode vacilar de acordo com sua sorte no momento da distribuição. Aqui abro um parênteses. Jurisprudência e precedentes são coisas distintas. Quer me ver irritado é dizer que alguém encontrou “duas jurisprudências do STJ”. Jurisprudência – que é una e portanto sempre utilizada no singular – é o conjunto de vários precedentes reiterados e num mesmo sentido. As decisões (ou precedentes) conjuntamente formam a jurisprudência.

Pois bem. Não havendo jurisprudência sobre a matéria, aí acredito que o magistrado está livre para aplicar o seu entendimento ao caso. Também entendo que, em havendo precedentes vacilantes nos Tribunais, pode o juiz monocrático escolher o que melhor lhe aprouver. Mas, sedimentada a matéria nas Cortes, deve o juízo monocrático aderir ao Direito Pretoriano da mesma forma que deve prestar deferência ao direito positivado.

Já aos Tribunais, cabe a missão de definir a jurisprudência e – se as condições jurídicas ou sociais assim exigirem – revisá-la. Quando mais elevada a Corte no sistema recursal, mais acentuado o seu papel de fazer e firmar jurisprudência no geral, e menor o seu papel revisor caso-a-caso.

Hoje, esse conceito de Direito Pretoriano já não é mais tão herético quanto era há uns cinco anos. Com o advento da Súmula Vinculante e Repercussão Geral do STF, e com a Lei dos Recursos Repetidos do STJ, começa a se amoldar esse sistema racional de jurisdição que sempre defendi. STJ e STF passam a julgar menos processos, mas fazem julgamentos de mais qualidade e que tem a conseqüência de nortear o judiciário como um todo. Por mais que as súmulas do STJ não sejam vinculantes, não existe uma só razão para que o julgador de primeiro grau não as respeite, desde que aplicáveis à espécie do caso ( a questão de distinguibilidade será abordada no bLex algum dia no futuro).

Prova, ao final das contas, que com poucas adaptações o Civil Law brasileiro e o stare decisis de inspiração anglo-saxã podem sim trabalhar em conjunto para criar tanto um sistema jurídico de regras claras, como também um judiciário que utiliza de modo racional os limitados recursos públicos a que tem acesso.

10 comments to Direito Pretoriano

  • [...] para lembrar: O Daniel ainda está devendo uma análise das últimas quatro súmulas que foram aprovadas. Com mais essas, terá agora que comentar 9 verbetes. Por Equipe do bLex em [...]

  • [...] diferença histórica tem se erodido nos últimos anos. Já escrevi aqui no bLex sobre essa evolução do nosso direito pretoriano, e uma análise fria do corrente estado do nosso processo civil leva à inexorável conclusão que [...]

  • [...] ao nosso sistema de civil law. Por inúmeros motivos já discutidos em posts anteriores (aqui e aqui) o direito brasileiro está dando força aos precedentes e permitido que os mesmos passem a [...]

  • Fábio Cordeiro de Lima

    Daniel, descobri o blog comunitário, cujos textos são bastantes interessantes. O texto são bastantes equilibrados sem sectarismos. O debate deve ser plural. Os operadores do direito vêem a mesma questão sob prisma diverso. Sempre que possível, vou colocar os meus comentários procurando trazer um pouco a minha visão enquanto magistrado.

    Compartilho integralmente das idéias expostas. No exercício do ofício judicante, procuro seguir o que vc disse, inclusive coloquei um comentário no blog de Gerivaldo se vc quiser conferir. Em tese, o jurisdicionado não deveria estar interessado no que “Fábio” pensa, mas no que o Juiz decide que deve procurar reafirmar o direito vigente e consagrar os valores da sociedade. Não obstante isso, alguns magistrados confundem a sua pessoa com o cargo ocupado, fundindo as duas imagens. Para mim, é ilegítimo o juiz basear uma decisão numa visão particular de mundo (política, religiosa, social) que não corresponde a uma pensamento médio da sociedade (embora seja cada mais difícil numa sociedade conflitusa e extremamente dividida).

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Excelência,
    Quero dizer que conseguistes articular com eloquência e precisão o cerne do argumento ao redor do qual eu tateava, mas nunca tinha conseguido identificar: num sistema de precedentes, o estado-juiz se diferencia da ideologia pessoal do cidadão investido na judicatura.
    Pretendo fazer nos próximos dias um post no bLex sobre o debate que ressuscitei lá no Gerivaldo, e gostaria da tua permissão para – citando, obviamente, a fonte – incorporar teus argumentos feitos aqui e lá.
    De qualquer modo, seja bem-vindo ao bLex. Todos nós da equipe do bLex ficamos lisonjeados e honrados com os gentis elogios.
    Por fim, peço desculpas pela demora ao responder. Estive numa pequena viagem de trabalho e só retornei ao computador agora à noite.

  • Fábio Cordeiro de Lima

    Daniel, fique a vontade. O debate plural dispensa as formalidades, por isso, se permitir, vamos conversar pelo 1º nome (Fábio ou Daniel) . Afinal, não estamos em audiência com aquela toda ritualística. Sempre enxerguei a judicatura a partir da minha experiência pessoal, mas o Judiciário é composto de diversas ilhas. Posso dizer que sou um felizardo porque, além de mim, possuo mais três pessoas me ajudar e possuo uma estrtura razoável de trabalho. Os casos trazidos pelas equipes são pitorescos mesmos e cumprem o seu papel de criticar sem cair para o lado pessoal. Por exemplo, a meta 2 refletiu a necessidade de dar uma celeridade a uma massa de processo, mas eles precisam ser enferentados realisticamente, sem subterfúgios. Outro problema da meta 2 é que eles não equacionam os novos, ou seja, o arcevo dos processos antigos não podem ignorar os processos novos. Se para julgar os antigos precisa ignorar os novos, criamos um problema lá na frente.

    Grande abs,

  • Fábio Cordeiro de Lima

    Somente complementando, o meu ponto de vista sobre o post de Gerivaldo. Nem todo caso é um caso difícil. O neoconstitucionalismo não prega uma superação radical do positivismo, mas uma readequação dentro do ordenamento jurídico. Se na fase do jusnaturalismo tinhamos que buscar inspiração de fora, as Constituições dos pós-guerra constituem uma constelação de princípios e regras que permite ao magistrado buscar a justiça no interior do ordenamento, que passa pela busca da igualdade de soluções. Já enfrentei casos difíceis envolvendo o controle de políticas públicas que não podem ser solucionados puramente com a subsunção de regras, mas isto não é a regra. A maioria dos casos é de que se a reconstrução dos fatos guarda correspondência com as premissas, justificada está a solução (justificação interna). Para superar o esquema subsuntivo, é necessário fundamentação substancial (razões superiores que justificam o descumprimento da própria regra – Humberto Avila), considerando as peculiaridades do caso concreto. E mais, se o intérprete consegue resolver o problema com a regra, porque justificar com a dignidade da pessoa humana. Já li decisões da STF uilizando dignidade e etc, mas a fundamentação era legal. A dginidade foi utilizada como adereço. Particularmente, sou contra isto porque banaliza os princípios. Aliás, não falta doutrinadores de escol como Humberto Avila, Ricardo Schief, Ana Paula de Barcellos e Daniel Sarmento que demonstram o equívoco de certas decisões. O constitucionalismo defendido por estes autores e outros teve o mérito de ampliar o debate jurídico, mas não pôs freio na criatividade dos interpretes, o que somente está sendo feito agora. Muitas vezes, tenho que dizer “não” apesar de possuir compreensão diversa sobre a matéria, mas prefiro manter a coerência do ordenamento do que parecer um corpo errático. Por outro lado, não tenho medo de evoluir quando verifico que os argumentos da instância superior são melhores do que o meu. Agora, o mais importante é ter coerência porque não se pode utilizar um argumento lá e depois negá-lo dali em diante. O princípio da não contradição e do terceiro excluído são regras de lógica que podem ser transplantadas, sem fratura, para o pensamento jurídico.
    Em resumo, se para agir assim, tiver que ser taxado de positivista, o rótulo me cai bem.

  • Primeiramente queria parabenizar o autor do texto, não só este do Direito Pretoriano, a qual no nosso entenderé fantástico ao chamar atenção da comunidade jurídica para essa nova realidade. Segundo porque venho acompanhando os seus comentários sobre o anteprojeto do CPC e o mesmo sempre é bem coerente em seus posicionamentos, bem como articula as palavras de modo simples e inteligível. Quero de plano concordar com as ponderações do Dr. Fábio, desculpa o Doutor, mas no início é assim Excelência, pois como magistrado há quase doze anos também tenho o seu pensamento, inclusive academicamente assim me posicionei em meu último livro Processo Constitucional nova concepção de Jurisdição em que tratei o tem específico e fico muito feliz que estejamos formando um novo grupos de pensadores, pois só assim podemos mudar por exemplo a forma de tratar os processos nesse país, sem que os mesmos sejam mais importante do que os direitos materiais que se buscar tutelá-los. Parabéns a ambos e estarei sempre os lendo. ABRAÇO A TODOS DO BLOG OU SITE, POIS NÃO ENTENDO MUITO DESSA PARTE.

  • Jocione Souza Junior

    Caro Dr. Daniel,
    há algum tempo tenho acompanhado os posts deste blog, por sugestão de um professor, mas é a primeira vez que resolvo comentar
    da simples visão de um, ainda acadêmico de Direito, acredito claramente na importância da Jurisprudência no norteamento de nosso ordenamento jurídico, especialmente na resolução de conflitos cujo entendimento ainda não é pacífico, como costumo ouvir doutrina e jurisprudência tem a todos os gostos. Contudo acredito que o livre entendimento do juiz de 1º grau é fundamental, ainda que diverso de súmula de tribunal superior, uma vez que o entendimento de tribunal superior nem sempre é perfeitamente amoldável ao caso concreto, diferentemente do entendimento livre do juiz de 1º grau que em tese está mais próximo do caso concreto.

    Abraços

    Jocione Souza Junior

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