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Os Limites do Judiciário frente ao Ato Administrativo

Em oportunidade anterior, o bLex publicou excerto de petição que defendia a impossibilidade jurídica do Judiciário alterar os termos de um contrato de concessão, que foi desenhado de acordo com a conveniência e discricionariedade administrativa do Poder Concedente. Recentemente, em julgado importante (RESP 973686) o Superior Tribunal de Justiça (mais ou menos) confirmou essa tese, bem como desenhou com precisão as hipóteses em que o ato administrativo pode sofrer modificação ou limitação judicial. É que o STJ não disse que é impossível ao judiciário intervir no ato discricionário, mas definiu a estreita via em que tal interferência pode ocorrer sem violar a Constituição.

O caso era o seguinte: A ANATEL definiu que, por razões técnicas e econômicas, certos distritos rurais do município de Marialva (Paraná) deveriam ser considerados como “áreas locais” distintas da sede municipal, para fins de telefonia. O que isso significa, na prática, é que se alguém que em uma zona do município e ligasse para alguém noutro distrito, pagaria uma ligação interurbana e não uma ligação local.

A Associação Comercial e Industrial de Marialva não gostou e manejou Ação Civil Pública, onde obteve decisão favorável no Tribunal Federal Regional da 4ª Região. As rés (ANATEL e TELEPAR) recorreram ao STJ.

Lá, a Segunda Turma, em acórdão conduzido pelo voto do Ministro Humberto Martins, decidiu em favor dos recorrentes. Disse o STJ que como houve uma decisão administrativa discricionária – e razoável – o Judiciário não poderia alterá-la por respeito ao princípio de separação de poderes. E, com mais relevância, o Superior explicou didaticamente como o Judiciário deve lidar com o mencionado princípio. Ou seja, o STJ explicou como deve o Judiciário aplicar o princípio da separação dos poderes quando questionada a discricionariedade de ato da administração, traçando um fino equilíbrio entre as questões jurídicas quem conflitam entre si em casos como esses.

Na parte que interessa à nossa discussão, disse a decisão:

DO MÉRITO DE AMBOS OS RECURSOS ESPECIAIS

A controvérsia instaurada nos autos da ação civil pública inicial, e que culminou neste apelo extremo interposto tanto pela Telepar Brasil Telecom S⁄A quanto pela ANATEL, diz respeito à legalidade dos critérios escolhidos pela ANATEL para definir o conceito de “área local”, e que possibilitaram a cobrança de tarifa interurbana nas ligações telefônicas realizadas entre a sede e os distritos localizados dentro da área territorial do Município de Marialva-PR.

Discute-se, ainda, a possibilidade de o Poder Judiciário adentrar no mérito do ato administrativo de natureza discricionária, para desconsiderar os critérios escolhidos pela ANATEL e estabelecer outros parâmetros – como sendo corretos para a fixação do preço tarifário.

Ao apreciar o caso, o Tribunal de origem entendeu:

“que a prática de tarifas diferenciadas nas ligações de telefonia fixa, entre terminais situados no mesmo município, certamente vai de encontro aos princípios da isonomia e da razoabilidade, norteadores de todo o proceder da Administração Pública, seja ela direta ou indireta, em sentido subjetivo ou objetivo.

Diante de tal quadro, não se pode admitir que as localidades de Aquidaban, São Luiz e São Miguel de Cambuí, situadas nos limites territoriais do Município de Marialva, paguem tarifas interurbanas para ligações dentro do território municipal, de modo fazer com que os consumidores ali residentes tenham que arcar com custos telefônicos consideravelmente superiores àqueles cobrados de outras localidades.
Não se pode deixar ao líbito da concessionária, do poder concedente ou da entidade reguladora a adoção de critérios tarifários não razoáveis, que ensejem cobranças excessivas. A utilização de padrões técnicos, ainda que ditada por conveniências econômico-financeiras, deve também observar coerência com as realidades geográfica e social, de modo a evitar situações de flagrante desigualdade. A realidade política e social do País não pode ser ignorada pela ação normativa da Administração Pública, de modo a estabelecer discriminação entre os munícipes”. (fls. 514⁄515)

Observa-se que a segunda instância procurou privilegiar os princípios da proporcionalidade e razoabilidade para afastar a incidência das regras que estabeleceram os critérios tarifários e, consequentemente, adentrar em seara que inicialmente estava adstrita à atuação da administração pública.

Todavia, apesar de possível a incursão do Poder Judiciário no mérito do ato administrativo, interferências dessa magnitude só devem ocorrer em situações excepcionais, em que o desrespeito aos direitos fundamentais seja indubitável, e a situação fática, no caso concreto, coloque o julgador em posição de tomar a decisão que mais atende à vontade da lei.

É que, em regra, quando a lei concede ao administrador público o dever-poder para atuar de acordo com a conveniência e a oportunidade não lhe está atribuindo carta branca para agir como bem entender, mas apenas conferindo um espaço de atuação mais flexível para que seja possível, diante do caso concreto, tomar a melhor decisão possível.

A busca pela melhor decisão possível, pela decisão-ótima, somada à impossibilidade do legislador poder prever, na infinitude de probabilidades que o caso concreto pode manifestar, qual a atitude que melhor atenderia ao interesse público é a única razão para a existência dos atos administrativos discricionários.

Todavia, em situações excepcionais, a atitude que deve ser tomada pelo administrador para atender à finalidade legal, ou seja, a decisão-ótima mostra-se impassível de dúvidas. Nesses casos, não há mais discricionariedade, mas sim o dever de ação ou de abstenção, cujo desrespeito é passível de correção pelo poder judiciário.

Com efeito, as circunstâncias fáticas podem reduzir a margem de discricionariedade do administrador, ou até eliminá-la, de modo que, quando este age em desconformidade com a finalidade legal, é possível ao Poder Judiciário substituí-lo e tomar a decisão que se ajusta à vontade da lei, sem que isto se constitua uma violação do princípio da separação dos Poderes.

Em síntese, para que seja possível ao Poder Judiciário substituir o administrador e examinar o mérito de ato inicialmente sujeito a um juízo discricionário, é preciso que o caso concreto elimine os questionamentos a respeito da decisão-ótima que o agente público deveria tomar.

In casu, não vejo como deserta de dúvidas a atitude da ANATEL, que, no uso das atribuições que lhe foram conferidas pelo art. 103 da Lei n. 9.472⁄97, fez editar a Resolução n. 85⁄98, na qual definiu o conceito de “área local”, para efeito de cobrança da tarifa local de acordo com critérios técnicos e econômicos.

Para uma melhor visualização, necessário se faz a transcrição dos referidos textos normativos:

“Art. 103 da Lei n. 9472⁄97. Compete à Agência estabelecer a estrutura tarifária para cada modalidade de serviço.”

“Art. 3º da Resolução 85⁄98. Para fins deste regulamento, aplicam-se as seguintes definições:

(…)

II – Área Local: área geográfica de prestação de serviços, definida pela agência, segundo critérios técnicos e econômicos, onde é prestado o STFC na modalidade local.”

Com efeito, a escolha de critérios técnicos-econômicos, e não o geográfico-político, para a definição do conceito de área local, é medida que até pode ser questionada, mas que, de maneira alguma, pode ser unanimemente rechaçada como violadora da finalidade buscada pela Lei n. 9.472⁄92.

Isto porque, é perfeitamente defensável a idéia de que, ao escolher os critérios técnicos-econômicos na definição das “áreas locais”, a ANATEL visou a atender o desenvolvimento e expansão do serviço de telecomunicações, por meio de uma tarifação diferenciada, nas áreas onde a implantação da rede telefônica demande um custo maior em face de fatores técnicos ou de descontinuidade urbana, ainda que em localidades pertencentes a um mesmo município.

Ademais, é de bom alvitre ressaltar que o art. 2º, II, da Lei n. 9472⁄97 estabelece como obrigação do Poder Público estimular a expansão do uso de redes e serviços de telecomunicações, medida que está umbilicalmente dependente do equilíbrio econômico-financeiro entre o custo para a implantação do serviço e o valor por ele cobrado.

Dessa forma, há uma exemplar “zona cinzenta”, onde não se pode emitir um juízo de certeza a respeito da legalidade, ou da ilegalidade, dos critérios adotados pela ANATEL na Resolução 85⁄98, que definiu o conceito de área local sujeita à tarifação local.

Em outras palavras, há dúvidas insuperáveis quanto à legalidade da atuação do agente público na escolha dos critérios que definiram o conceito de área local, e que permitiu, no caso dos autos, que localidades diversas, ainda que dentro do mesmo município, em razão de fatores técnicos e econômicos, pudessem sofrer tarifação de ligações interurbanas.

É na dúvida, na zona onde não se pode emitir um juízo de certeza, que reside o mérito do ato administrativo discricionário e que cabe ao administrador público, e somente a ele, agir para encontrar o caminho que melhor atenda à finalidade legal.

Sendo assim, no caso dos autos, ao adentrar no mérito das normas e procedimentos regulatórios que inspiraram a configuração das “áreas locais”, o Tribunal de origem invadiu seara atribuída à administração pública, atitude afrontosa aos freios impostos pelo princípio da separação dos Poderes.

A decisão citada, vale dizer, consolida a jurisprudência tanto da Primeira Turma quanto da Segunda, e cita diversos julgados no mesmo sentido.

Assim, da análise da decisão, percebe-se que o Judiciário já admite questionar a discricionariedade administrativa, desde que não haja dúvida de que o administrador escolheui opção inferior, quando uma opção inquestionável e indubitavelmente superior exista. Excetuada essa hipótese, respeita-se a decisão administrativa. Outrossim, e de modo mais relevante, percebe-se uma opção do STJ em proteger o direito normatizado e o ato administrativo em detrimento a construções feitas a partir de penumbras e emanações jurídicas de princípios genéricos aplicáveis à espécie apenas de forma reflexa.

De um modo ou de outro, a tese dantes defendida na peça que postamos permanece como válida. A não se que se prove sem qualquer sombra de dúvida que o poder concedente tinha opção insofismavelmente melhor, se deve respeitar a via eleita pelo administrador no contrato de concessão.

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