Hoje falarei brevemente sobre uma situação que ocorre com inexplicável frequência no nosso judiciário, pois quem advoga por estas bandas com alguma constância certamente já viu decisão judicial ordenando o réu a pagar determinado valor “sob pena de multa diária”.
A situação já é tão comum que alguns colegas advogados nem se assustam. Correm para cumprir a ordem de modo a se livrar da malfadada multa. Muitos, seja por inexperiência, seja por não se preocuparem com atualização desde as reformas processuais ocorridas durante a última década, sequer questionam se provimento está dentro do poder jurisdicional do magistrado.
Para compreender a deficiência de decisões dessa linha não é necessário compreender a concepção supostamente sistêmica do direito processual; na verdade, basta se dar ao trabalho de ler o Código de Processo Civil.
É que o CPC diz que essas multas diárias – que, em juridiquês, chamamos de astreintes – só são cabíveis nas hipóteses dos artigos 461 e 462. Ou seja: O juiz só pode ordenar a multa diária quando a obrigação que ele está impondo é uma obrigação de fazer, de não fazer, ou (em algumas hipóteses) de entregar coisa.
Para que não restem dúvidas: O direito processual não autoriza o juiz a aplicar multa diária quando ordena alguém a cumprir a obrigação de pagar um valor em dinheiro.
Já disse o STJ que a multa diária, ou astreintes, “multa diária – que é providência que não encontra previsão no ordenamento para as condenações em pagamento de quantia certa” AgRg na MC 13566 / RJ AGRAVO REGIMENTAL NA MEDIDA CAUTELAR 2007/0286914-5 Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118) Órgão Julgador T3 – TERCEIRA TURMA Data do Julgamento 11/03/2008 Data da Publicação/Fonte DJe 26/03/2008
Do ponto de vista conceitual, essa diferenciação faz sentido. Existem algumas obrigações que o juiz consegue executar in natura, sem a intermediação da parte. Se o credor tem direito a receber mil reais e o devedor tem mil reais numa conta bancária qualquer, o juiz pode se valer do maquinário estatal para – via BacenJud – arrancar os mil reais da conta do devedor e entregar o valor ao credor. O juiz não precisa mandar a parte pagar, pois o judiciário tem meios de fazer valer diretamente a decisão judicial.
Da mesma forma se o credor tem direito a cem garrafinhas da saborosíssima Cerveja Medieval (que acabou de receber um merchand gratuito de um fã devoto) e o devedor tem milhares das ditas garrafinhas em estoque no seu armazém, o juiz pode ordenar ao oficial de justiça que efetue a busca e apreensão do material, entregando-as ao agora feliz credor.
Situação completamente diferente ocorre quando o autor tem direito que o réu faça ou deixe de fazer algo. Se o réu tem obrigação de pintar um quadro encomendado pelo autor, o juiz não tem como se substituir à parte e executar a obrigação in natura. É a própria parte que tem que fazer o que o juiz está mandado. Nessas circunstâncias, não podendo mandar prender ou sequer açoitar o recalcitrante, resta ao juiz aplicar a multa diária como o objetivo de forçar, de meio indireto, que a obrigação seja adimplida.
De igual modo, se o réu está de posse da aliança que era da bisavó da autora, o juiz pode aplicar multa diária para que devolva, senão fica muito fácil esconder a tal aliança na casa da vizinha da namorada, onde juiz nenhum do mundo consegue encontrá-la.
Pois bem. Há certo debate doutrinário se o juiz pode aplicar multa diária se a coisa que está com o réu pode facilmente ser obtida mediante busca e apreensão. Mas não há absolutamente nenhuma dúvida que o juiz não pode mandar o réu pagar dinheiro sob pena de multa diária.
Aliás, para entender o absurdo de tal comando, basta ver um caso concreto: “X” deve a “Y” dois mil reais, e o juiz manda que “X” pague a dívida, sob pena de pagamento de multa diária de 200 reais.
“X” demora vinte dias e não paga. “Y” então pede, e o juiz defere, que se bloqueie no BacenJud a quantia de dois mil reais, acrescidos de quatro mil reais de multa diária (R$ 200 x 20 dias).
Então, o juiz vai e bloqueia na conta do devedor (realizando execução in natura) a importância de seis mil reais.
Viram a incongruência? Se a obrigação podia ser executada diretamente pelo magistrado, qual a justificativa de não fazê-lo em relação ao dois mil reais originais? Porque esperar que a dívida triplicasse por conta de astreintes ilegais e sem sentido para, aí então, proceder à tal execução in natura.
Portanto, fica o alerta aos colegas. Se esses poucos magistrados que se valem desse mecanismo ilegítimo forem sistematicamente opostos, certamente passarão a agir como manda a lei. Nada obstante, enquanto a ameaça da multa – ainda que ilegal – for mais eficiente que a execução in natura não razão para um julgador despreocupado com a boa técnica adequar a sua estratégia ao que manda a lei.
é, mas já vi muitos casos em que o juiz usa o bacenjud com última opção… depois de muito se “implorar”…
Há algo de muito errado no reino de abrantes quando eu leio um texto jurídico antes de 8 da manhã e o que mais me interessa é o link da cerveja!
Artigo esclarecedor, estava pensando exatamente nisso outro dia.
Mas, mudando um pouco de assunto, onde compro a cerveja?
Já me arrependi de falar da cerveja. Virou o o foco do post! De vez em quando, tem no Roma. Mas – ironia das ironias – é muito provavél que o Danilo não tenha que comprar a tal Medieval. Vou contactá-lo por email e – ainda hoje – faremos aqui um post sobre o assunto.
É.É. Pois é.
O tal de bacem/jus é falho, abusivo, invasivo e autoritário. Comunico aos “Senhorias” e aos “Excelências” que, numa dívida de 6 mil, (eu era avalista), o “Excelência” mandou bloquear 14 mil só porque não levei advogado e, então, segundo os próprios, deu-se um massacre. Só que nas minhas 3 contas bloqueadas, Caixa, Bradesco e Santander, só deixei 49 centavos, claro, já sabendo da “armação”. Aí, hamham, abri outra conta no Banco do Brasil, já livre da “armação” e bloqueio e lá movimento livremente, sem bloqueio. O Malandro “cobrador”, agora que o golpe deu errado, me procurou, e agora “aceita” os 6 mil iniciais. Vou pagar(quando puder) com as devidas reverências e lições, incluindo como trilha sonora “My way” (Frank Sinatra).Abraços e parabéns pelo blog
Doutor Daniel,
quando a decisão “equivocada” vem inserida numa medida antecipatória no âmbito dos juizados especiais? O que fazer?
Eduardo,
Mandado de Segurança, com certeza absoluta. É causa para obtenção de provimento liminar, pois a multa diária para obrigação exequível in natura (especialmente obrigação de pagar obrigação em dinheiro) viola direito líquido e certo do devedor.
AH, e vou entrar com ação reivindicando o meu prêmio, sendo que o “Sr” Danilo pertence ao staff da casa portanto, é do circulo de amizades do grupo pertencente ao blog. Em assim sendo, não vale! O proximo foi o próprio Dr Daniel Nogueira que é dono do blog então, o próximo sou euzinho, com e mail válido: O INJUSTIÇADO. Fechado? Aguardem suas intimações.
gostei muito da matéria. TENho que esplanar o assunto em sala de aula e estava faltando uma boa crítica, e encontrei. valeu.
Fico muito feliz em ter ajudado. Sempre às ordens.
Eu tenho uma dúvida. Eu tenho um caso em que o juiz arbitrou R$3.000,00 por dia, em obrigação de fazer, a uma operadora de telefonia. Limitou em até R$100.000,00. Já tem 7 meses e, portanto, alcançou o limite. A minha pertunta é: o valor das astreintes é revertido em favor do Cliente? Executa-se nos próprios autos? Grata. B. O.
gostei muito!! mas tenho uma pergunta!! ate quando vigora astreinte se nao houver o cumprimento da obrigacao? qual o prazo? todo mundo diz ate o inadimplemento da obrigacao!!! mas nao tem um prazo especifico? dias , meses, ano ate morrer sei la? grato!
Estou passando por uma situação assim por ter sido cooperada numa escola nos anos de 1997 a 2000 e sofri um bacenjud em 2009 que não atingiu o valor total(tudo correu a revelia).Estou recorrendo;porém tenho uma pergunta:até quando vigora astreinte se não houver o cumprimento da obrigação,qual o prazo específico para caracaterizar inadimplemento da obrigação?
Obrigada
Sandra
Já advoguei em um processo (assumi a causa já em andamento, coisa que eu não gosto de fazer), em que seu valor original era de R$ 350,00 e, pasmem, por causa das famigeradas astreintes, o valor da condenação já estava em R$ 50.000,00. Isso mesmo: cinquenta mil reais!
Parece até promoção: “entre com uma causa de 350 reais, e ganhe 50 mil!”
No caso de a União descumprir uma decisão liminar acerca de uma obrigação de fazer, como se conta o prazo, já que a ela foi determinada que cumprisse IMEDIATAMENTE? Ouvi falar em um prazo de 05 dias pra ela cumprir, existe este prazo? Sendo liminar, vc pode pedir logo o valor em benefício do autor da ação, exato?
Grato,
As astreintes têm natureza jurídica sancionatória pelo descumprimento de uma ordem judicial. Elas diferem das perdas e danos que são devidas ao credor autor pelo descumprimento da obrigação, credor este que, no caso das tutelas específicas (fazer, não-fazer e dar) só utilizará tal via se assim quiser ou se a prestação se tornar impossível. Cumulação de astreinte com perdas e danos, embora usual, viola frontalmente a boa-fé objetiva em detrimento do réu e, sobretudo, a vedação ao enriquecimento sem causa (princípios civis explícitos).