O Juiz Federal do TRE/AM, no julgamento de segunda-feira, deu um voto muito bem construído (apesar de, na minha humilde opinião essencialmente equivocado quanto à aplicação do direito) onde afastou a alegação de inconstitucionalidade na quebra de sigilo fiscal no atacado contra pessoas físicas e jurídicas cuja única conduta a justificar tal atitude foi a de participar na atividade político-eleitoral, fazendo doações a candidaturas.
No entanto, um trecho do voto merece destaque.
O Dr. Márcio Luiz Coelho de Freitas, cuja elevada capacidade técnica deve ser reconhecida, argumentou que, em situações limítrofes, deve prevalecer a interpretação que prime pela transparência do processo eleitoral. Sustentou essa posição lembrando uma frase originalmente escrita num julgado da Corte Suprema dos Estados Unidos, pelo min. Louis Brandeis:
“A luz do sol é o melhor desinfetante.”
Fico muito impressionado quando eu discordo do conteúdo do argumento de alguém, mas ao mesmo tempo fico admirado com sua lógica argumentativa. Foi o caso. A decisão foi brilhante, mas não concordo com sua conclusão. Segundo o entender do TRE o simples fato de alguém realizar doação a candidato é, por si só, razão suficiente para se pôr fim ao sigilo fiscal protegido legal e constitucionalmente. Tratar todo doador como alguém que renuncia ao sigilo fiscal (principalmente sem antes informar ao doador dessa “conseqüência automática”) é violação de tantos princípios basilares do direito que a discussão nem cabe neste post. Algum dia, quem sabe, escreverei sobre doação às campanhas e o direito de expressão.
Mas a questão da ilicitude das provas é fácil de resolver no plano normativo. O Código Tributário Nacional, tal como modificado pela Lei Complementar 104, estabelece não apenas a existência de sigilo, mas também as hipóteses e formas em que tal sigilo pode ser excetuado. Diz a norma:
Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. (Redação dada pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)
§ 1o Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes: (Redação dada pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)
I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça; (Inciso incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)
II – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa. (Inciso incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001
§ 2o O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo. (Parágrafo incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)
§ 3o Não é vedada a divulgação de informações relativas a: (Redação dada pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)
I – representações fiscais para fins penais; (Inciso incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)
II – inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública; (Inciso incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)
III – parcelamento ou moratória. (Inciso incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)
Pois bem. Para que a informação usada como base para a representação contra o doador seja lícita e legítima, a acusação tem o dever de provar que ou foi obtida “por requisição de autoridade judiciária, no interessa da justiça”, ou que foi pedido de autoridade administrativa, desde que comprovada a “instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa”
Nenhuma dessa duas hipóteses está caracterizada nos autos desses processos que correm no TRE. O TSE, como bem se sabe, acumula funções judiciais com funções administrativas, e não se pode presumir que um mero oficio emanado daquela Corte à Receita Federal se constitua em “requisição de autoridade judiciária, no interessa da justiça”. Para caracterizar a hipótese do inciso I do § 1º da Lei 198, seria necessário existir processo judicial que justificasse a atuação judiciária ( e não administrativa) do Tribunal Superior Eleitoral, e isto não está provado nos autos.
De igual modo, não há prova nos autos que o TSE tenha, no uso de sua atribuição administrativa, tenha instaurado procedimento investigatório conta cada uma dos doadores . Numa e noutra situação não se configura hipótese autorizada em lei para a quebra do sigilo.
Mais divertido foi um dos argumentos para justificar a quebra de sigilo. O TRE/AM diz que como há um convênio de cooperação técnica entre o TSE e a Receita, não há que se falar em ilegalidade. Legal. E eu aqui pensando que a lei e Constituição eram fontes de direito mais elevadas do que um convênio…
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