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Duas Letras, Duas Mil Folhas, Um Milhão de Reais

Já que estamos falando da língua portuguesa, me veio à mente um caso realmente interessante em que a simples compreensão de uma ou duas letrinhas da língua portuguesa talvez tivesse sido suficiente para evitar um litígio que assumiu proporções monstruosas.

A situação é a seguinte:

Se uma empresa de Minas Gerais produz uma mercadoria que é destinada a ser comercializada ou industrializada na Zona Franca de Manaus, essa mercadoria goza de isenção de ICMS, por força de instrumento normativo denominado Convênio ICM 65/88.

Esse mesmo benefício, de isenção de ICMS, foi estendido a outros municípios por convênios ulteriores. À guisa de exemplo, diz o Convênio 52/92:

Convênio 52/92. Cláusula primeira Ficam estendidos às Áreas de Livre Comércio de Macapá e Santana, no Estado do Amapá, Bonfim e Boa Vista, no Estado de Roraima, Guajaramirim, no Estado de Rondônia, Tabatinga, no Estado do Amazonas, e Cruzeiro do Sul e Brasiléia, com extensão para o Município de Epitaciolância, no Estado do Acre, os benefícios e as condições contidas no Convênio ICM 65/88, de 6 de dezembro de 1988.

Deve ser dito, ainda, que se a mercadoria com isenção (ou melhor, suspensão conversível em isenção, no dizer de alguns autores) sai do município de Manaus para um município qualquer, o imposto que deixou de ser pago passa a ser devido. É essa a tônica da Cláusula Quinta do Convênio ICM 65/88:

Cláusula quinta As mercadorias beneficiadas pela isenção prevista neste Convênio, quando saírem do município de Manaus e de outros em relação aos quais seja estendido o benefício, perderão o direito àquela isenção, hipótese em que o imposto devido será cobrado, com os acréscimos legais cabíveis, pelo Estado de origem, salvo se o produto tiver sido objeto de industrialização naquela zona.

Portanto, se a empresa mineira manda a mercadoria para Manaus, não há ICMS a ser pago a Minas Gerais, a não ser que a mercadoria não passe por nenhum processo de industrialização e saia de Manaus para, por exemplo, Belém.

De idêntico modo, se a empresa mineira manda a mercadoria para Boa Vista, também não há ICM a pagar, pois os benefícios de Manaus foram extendidos àquele município no Convênio 52.

Pois bem. O que acontece se a mercadoria da empresa mineira for enviada à Manaus (coberta pela isenção) e de Manaus seja enviada a Boa Vista (também coberta pela isenção)? O ICM passa a ser devido?

O Estado do Amazonas, numa leitura tosca e inexplicável da norma, acha que sim. Tanto acha, que lavrou um auto de infração de quase um milhão de reais contra um cliente nosso que enviou de sua matriz (aqui em Manaus) para uma filial (que vamos dizer que se situe em Boa Vista) mercadorias que vieram de Minas Gerais. O auto de infração virou uma ação anulatória que hoje tem mais de duas mil folhas.

O Fisco está realmente tomando o tempo do Judiciário à toa. Primeiro, que qualquer pessoa alfabetizada que leia o convênio percebe que a saída de mercadorias das zonas de isenção autoriza O ESTADO DE ORIGEM a cobrar o ICM que deixou de ser pago. Nada mais justo. Minas Gerais foi quem deixou de receber a remuneração do ICMS quando da circulação originária, e agora o Fisco Amazonense quer que o contribuinte lhe pague o dinheiro que – se fosse devido – deveria ser dos mineiros.

Mas mesmo que Minas Gerais (que é quem tem capacidade tributária ativa neste caso) estivesse se arvorando a cobrar esse valor, estaria sem razão. Para chegar a essa conclusão basta realizar a “interpretação literal” que o art. 111 do CTN exige das normas concessivas de isenções.

Veja novamente o texto controvertido, para que possamos interpretar literalmente as suas condições:

Cláusula quinta As mercadorias beneficiadas pela isenção prevista neste Convênio, quando saírem do município de Manaus e de outros em relação aos quais seja estendido o benefício, perderão o direito àquela isenção, hipótese em que o imposto devido será cobrado, com os acréscimos legais cabíveis, pelo Estado de origem, salvo se o produto tiver sido objeto de industrialização naquela zona.

Portanto, para que haja perda de isenção, é necessário que a mercadoria saia de Manaus e também saia de Boa Vista. Afinal, se a mercadoria sai de Manaus, mas dá entrada no município de Boa Vista, não é possível dizer tenha saído “do município de Manaus e de outros em relação aos quais seja estendido o benefício”.

Afinal de contas, no âmbito literal, “e” é uma conjunção de natureza aditiva ou copulativa. Significa dizer que, havendo uso do vocábulo “e” a locução só é verdadeira se forem verdadeiras ambas as orações conectadas.

Ou seja, se a saída da mercadoria ocorre em Manaus, com respectivo ingresso em Boa Vista, não se pode cogitar ocorrida a perda da isenção; para que tal perda ocorra, é necessário provar que ambas as locuções são verdadeiras. Para que a perda de isenção ocorra, é necessário que a mercadoria não esteja em Manaus e nem em qualquer outro município para onde se haja estendido o benefício.

Para que a interpretação do fisco fosse correta, a norma precisava estar construída com uma conjunção de natureza alternativa ou disjuntiva (tal como o vocábulo “ou”). Ou seja, a leitura do fisco pressupõe a seguinte redação da norma:

REDAÇÃO FICTÍCIA: Cláusula quinta As mercadorias beneficiadas pela isenção prevista neste Convênio, quando saírem do município de Manaus OU de outros em relação aos quais seja estendido o benefício, perderão o direito àquela isenção, hipótese em que o imposto devido será cobrado, com os acréscimos legais cabíveis, pelo Estado de origem, salvo se o produto tiver sido objeto de industrialização naquela zona.

Se o texto conturbado tivesse a redação acima (o que não é o caso), aí sim estaria correto o Fisco. Bastaria a saída de qualquer um dos municípios em questão para que ocorresse a perda de isenção. No entanto, na redação atual, a perda só acontece quando o egresso ocorra de todos os municípios açambarcados pelas proteções do Convênio 65/88. Significa dizer, que se sair de um deles para ingressar no outro, as condições objetivas e literais da norma para a perda de isenção não se reunirão.

Ora, se o Fisco amazonense tem dificuldade de compreender texto explícito da norma, realmente é pedir muito que consiga diferenciar entre conjunções aditivas e conjunções alternativas. É com tristeza que se percebe que este caso, onde se disputa quase um milhão de reais, que já consumiu mais de duas mil folhas de papel, e que gastará preciosos e limitados recursos judiciários, poderia ser resolvido na origem com uma sólida formação em língua portuguesa do ensino fundamental.

6 comments to Duas Letras, Duas Mil Folhas, Um Milhão de Reais

  • Júlio Souto

    Mas Dr., pare com isso! Esperando lealdade do fisco para interpretar a lei corretamente? Eles sabem que estão errados e cobram de sac***** pq alguem sempre paga. Ou então alguém deixou de receber um faz me rir. O fisco não respeita a ninguém e não tem escrúpulos. Mesmo sabendo seu erro faz tudo para receber.

  • mmoreira

    Perfeita a tese defendida.
    Olhando a questão por outro anglo, também não poderia o fisco do Amazonas querer cobrar imposto em um operação envolvendo duas unidades federativas que gozam da mesma isenção fiscal. Veja que as remessas tanto para zfm como para boa vista gozam da mesma isenção, ou melhor, da mesma suspensão do icms, suspensão essa que torna-se isenção pela industrialização ou comercialização (esta dentro da propria área incentivada), portanto, incabível a cobrança do imposto nessa operação.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Moreira,
    Eu certamente espero que estejas certo; o cliente mais ainda. Assim que sair a decisão deste feito, eu publico aqui no bLex. Mas as minhas desconfianças é que o processo morre na falta de capacidade tributária ativa. O procurador nem soube como contestar esse ponto da nossa inicial, e sequer argumentou que o Amazonas seria o “Estado de Origem”. Disse em duas singelas linhas que a mercadoria saía daqui, portanto o ICM devia ser pago aqui.
    Olha como estão gastando nossos tributos: com gente que o desperdiça em tentativas vãs de cobranças indevidas…
    Obrigado pelo comentário.

  • Fabão

    Trabalho na advocacia pública e é importante que os advogados privados compreendam uma coisa: interpor ou não um recurso quase nunca é faculdade do agente que atue como advogado ou procurador. Muitas vezes o bom senso tem de ser deixado de lado porque não se sabe se lá adiante será nomeado um corregedor imbecil (sim, isso é possível) que irá complicar a vida de quem não recorreu.

    Não poucas vezes tentei convencer os escalões superiores de que esse ou aquele recurso era improsperável, algumas vezes prejudicial, ou seja, caso provido, a diferença perseguida pela Fazenda para baixar sua dívida não compensaria os juros e correção avolumados pela demora na execução e até o risco de multa por litigância de má-fé. E quase sempre tive que engolir um singelo não, de toda modalidade de chefe, pois no serviço público há os que saem da linha para se locupletar e os que andam na linha, mas têm medo de tudo. Os primeiros não farão nada que fuja às normas se não “levarem algum”. E isso não é comigo. Portanto, deles ganhei vários “nãos”. Dos segundos, nem precisa explicar porque já ganhei também ..rs.

    Por isso já opus, sim, recursos como o do colega, em “duas singelas linhas”, haja vista a absoluta falta de o que defender. Constrangido, claro. E graças ao meu senso de justiça apurado – modéstia à parte – muitas vezes torci para que a parte ex-adversa ganhasse, sem que isso implicasse em ser desidioso, quando possível. É ao juiz que cabe fazer justiça; ao advogado cabe defender os interesses do seu cliente. Se o cliente insiste numa ação desastrosa, minha obrigação, segundo o Código de Ética da OAB, é desestimulá-lo (como faço), e não descumprir o dever de fidelidade.

    Outra coisa: sempre que posso contribuo para a edição de súmulas administrativas (que a direção do órgão baixa, com matérias de entendimento pacífico, determinando que não se recorrerá). E acredite, a quantidade de súmulas tem crescido.

    Aproveitando a oportunidade e sua destreza com a matéria tributária, Daniel, sugiro que escreva algo (se já não o fez) explicando porque posso adquirir um produto da ZFM pela internet, com nota fiscal, pagando frete, mais barato que os vendidos no comércio em Manaus.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Fabão,

    Vou incluir a tua sugestão na minha pauta de futuros posts (que já está imensa). De qualquer modo, um dos próximos artigos que pretendo publicar é justamente sobre o custo da “desconfiança jurídica” na nossa sociedade. Quando um advogado público – que também goza da proteção do art. 18 do Estatuto da Ordem dos Advogados ( Art. 18 – A relação de emprego, na qualidade de advogado, não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia) – precisa defender uma tese que acredita indefensável com medo algum futuro corregedor idiota, há desperdício de valiosos e limitados recursos públicos. Noutras palavras, o nosso sistema jurídico legitima o consciente desperdício de dinheiro dos contribuintes por um servidor-advogado, apenas para evitar que um futuro servidor-advogado cometa um abuso de seus poderes. Transferem o ônus do Estado fiscalizar e punir para toda a sociedade, que tem que arcar com as ineficiências que tais desconfianças sistêmicas geram.

  • Fabão

    Sim, sim, o artigo 18 é um dos meus preferidos nas minhas argumentações. Mas há um entendimento sumulado segundo o qual a independência em voga restringe-se à adoção da tese a ser adotada; não transige a possibilidade de deixar de atuar no feito que lhe está distribuído.

    Remarque-se que não endosso o despedício provocado por recursos intermináveis. Por seu turno, temos de admitir que a subjetividade da teoria jurídica daria margem a todo tipo de conchavos com o particular, sob o pretexto da independência profissional.

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