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Repercussão, Terrorismo e a resposta do Ministério Público

Confesso que não esperava a repercussão causada pelo post da semana passada quanto à proibição legal de instaurar Inquérito Civil Público na seara eleitoral. Matérias a respeito apareceram no Portal do Holanda, no Blog do Ronaldo e até num dantes desconhecido Blog do Antônio Zacaraias. Mais interessante ainda: o Ministério Público Federal distribuiu nota respondendo à alegação.

Antes de apresentar (e comentar) a resposta do MP, faço questão de fazer um esclarecimento quanto à apresentação do assunto no Blog do Holanda. Como exímio jornalista que é, com faro para a controvérsia, o Holanda deu um zoom na parte do texto original onde este autor utilizou, até como mecanismo de retórica, a seguinte frase:

No pleito de 2010 o Ministério Público Eleitoral simplesmente decidiu ignorar a proibição legal de instaurar ICPs para apurar matérias de natureza eleitoral. Ao invés de manejar Investigações Judiciais e submeter suas requisições ao controle judicial, resolveu atuar por conta própria, aterrorizando inúmeros servidores públicos com incontáveis requisições, onde os ameaçava com o crime do art. 10 da Lei 7.347 caso não atendida a ordem.

A partir disso, extraiu a manchete:Barreiros acusado de violar a lei e praticar terrorismo contra servidores“.

Faço uma ressalva: nem todo mundo que, com suas ações, aterroriza a outrem está praticando terrorismo. Por exemplo: um palhaço, que está no circo com a intenção de alegrar e divertir, causa absoluto terror a certa crianças (como também a alguns adultos coulrofóbicos) mas nem por isso está praticando terrorismo. Aliás, o terrorismo pressupõe o dolo específico de espalhar o terror.

Portanto, a despeito da manchete citada, é óbvio que não chamei ninguém de terrorista nem acusei quem quer que seja de praticar terrorismo. Apenas disse que as requisições do Ministério Público tinham a consequência de aterrorizar seus destinatários, ante a ameaça do crime do art. 10 da Lei 7.347.

Dito isso, passemos à resposta que o Ministério Público enviou ao Holanda (como publicado neste link) . Diz a nota, tal como publicada:

NOTA

“Em resposta à nota publicada no Portal  do Holanda, sob o título Barreiros acusado de violar a lei e praticar terrorismo contra servidores, o Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM) esclarece o que segue:


1. O Ministério Público da União tem competência, nos termos do artigo 6º, I, a, da Lei Complementar nº 75/93, para promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos constitucionais.


2. Para o exercício de suas atribuições, inclusive em matéria eleitoral, o MPF é dotado dos instrumentos elencados no artigo 8º da Lei Complementar nº 75/93, no que se inclui requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta e realizar inspeções e diligências investigatórias. O mesmo dispositivo legal prescreve que a falta injustificada e o retardamento indevido do cumprimento das requisições do Ministério Público implicarão a responsabilidade de quem lhe der causa.


3. Compete ao Ministério Público Federal o exercício das funções do Ministério Público junto à Justiça Eleitoral, atuando em todas as fases e instâncias do processo eleitoral, dispondo de legitimação para propor, perante o juízo competente, as ações para declarar ou decretar a nulidade de negócios jurídicos ou atos da administração pública, infringentes de vedações legais destinadas a proteger a normalidade e a legitimidade das eleições, contra a influência do poder econômico ou o abuso do poder político ou administrativo.

4. Deste modo, entende o MPF/AM que as provas colhidas nos inquéritos civis públicos instaurados  para subsidiar ações eleitorais são válidas e legais.


5. O MPF/AM, por meio da Procuradoria Regional Eleitoral no Amazonas (PRE/AM), continuará cumprindo a sua função constitucional de guardião do regime democrático, assegurando que o processo eleitoral transcorra de forma íntegra e idônea e preservando este valor fundamental que é a democracia.”

Realmente, eu esperava uma resposta diferente. Aliás, alguns leitores do bLex, buscando defender a posição do Ministério Público, apresentaram nos comentários do post anterior argumentos jurídicos mais sólidos do que estes apresentados pela própria instituição. Eu esperada, por mais frágil que fosse, pelo menos uma alegaçãozinha de inconstitucionalidade do novo art. 105-a ou algo do gênero. Mas nunca a mera alegação de que “eu posso porque a Lcp 75 deixa”

Segundo a leitura que faz o Ministério Público, o novo artigo 105-A da Lei Geral das Eleições não tem absolutamente nenhuma função no mundo jurídico. É princípio elementar de hermenêutica que a lei não tem palavras inúteis. Quer dizer: se a lei disse as palavras “em matéria eleitoral, não são aplicáveis os procedimentos previstos na Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985” é porque quer que tenham algum significado. No ademais, há de se considerar a interpretação histórica. As palavras dantes mencionadas não existiam na redação original da Lei Geral das Eleições e o legislador se deu ao trabalho de as incluir na minirreforma trazida a efeito pela Lei 12.034/2009. Se o fez é porque queria que tivessem alguma função.

Pois bem. O raciocínio apresentado pelo Ministério Público é, mais ou menos, o seguinte: Existe uma norma que prevê, de modo geral e abstrato, a existência do Inquérito Civil Público e a atribuição para que o parquet dele se utilize em certas hipóteses. Diante disso, pouco importa a existência de uma norma específica que expressamente exclua a aplicabilidade do instituto.

O argumento é intelectualmente desonesto. (E antes que o Holanda venha dizer que estou chamando alguém de desonesto, que fique claro que estou dizendo isso na seara do embate acadêmico acerca de teses jurídicas em abstrato. Reclamo da ausência de rigor científico de um argumento teórico à luz dos fatos. Portanto, não há aqui qualquer imputação de qualquer qualidade a quem quer que seja)

Digo isso por vários motivos mas especialmente por este: O Ministério Público não se valia da lei complementar 75 para fundamentar suas requisições. Ao revés, transcrevia textualmente o art. 10 da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985 em suas requisições para sugestionar aos servidores públicos que o não atendimento da ordem constituiria crime. Agora, flagrando fazendo o que não devia, diz que na verdade estava atuando com base na primeira norma e não na segunda. O fato de a segunda estar estampada em todas as requisições deve ter sido, sei lá, por um erro do estagiário.

A questão, a meu ver, é simples. A Lei Complementar 75, de fato, assegura ao parquet o direito de se socorrer do Inquérito Civil Público mas não lhe dá essa atribuição na esfera eleitoral. Veja a redação do art. 6º, citado na nota de resposta:

Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:

I – promover a ação direta de inconstitucionalidade e o respectivo pedido de medida cautelar;

II – promover a ação direta de inconstitucionalidade por omissão;

III – promover a argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição Federal;

IV – promover a representação para intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal;

V – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

VI – impetrar habeas corpus e mandado de segurança;

VII – promover o inquérito civil e a ação civil pública para:

a) a proteção dos direitos constitucionais;

b) a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

c) a proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor;

d) outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos;

VIII – promover outras ações, nelas incluído o mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, quando difusos os interesses a serem protegidos;

IX – promover ação visando ao cancelamento de naturalização, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional;

X – promover a responsabilidade dos executores ou agentes do estado de defesa ou do estado de sítio, pelos ilícitos cometidos no período de sua duração;

XI – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas, incluídos os relativos às terras por elas tradicionalmente habitadas, propondo as ações cabíveis;

XII – propor ação civil coletiva para defesa de interesses individuais homogêneos;

XIII – propor ações de responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços;

XIV – promover outras ações necessárias ao exercício de suas funções institucionais, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, especialmente quanto:

a) ao Estado de Direito e às instituições democráticas;

b) à ordem econômica e financeira;

c) à ordem social;

d) ao patrimônio cultural brasileiro;

e) à manifestação de pensamento, de criação, de expressão ou de informação;

f) à probidade administrativa;

g) ao meio ambiente;

XV – manifestar-se em qualquer fase dos processos, acolhendo solicitação do juiz ou por sua iniciativa, quando entender existente interesse em causa que justifique a intervenção;

XVI - (Vetado);

XVII – propor as ações cabíveis para:

a) perda ou suspensão de direitos políticos, nos casos previstos na Constituição Federal;

b) declaração de nulidade de atos ou contratos geradores do endividamento externo da União, de suas autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo Poder Público Federal, ou com repercussão direta ou indireta em suas finanças;

c) dissolução compulsória de associações, inclusive de partidos políticos, nos casos previstos na Constituição Federal;

d) cancelamento de concessão ou de permissão, nos casos previstos na Constituição Federal;

e) declaração de nulidade de cláusula contratual que contrarie direito do consumidor;

XVIII – representar;

a) ao órgão judicial competente para quebra de sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, bem como manifestar-se sobre representação a ele dirigida para os mesmos fins;

b) ao Congresso Nacional, visando ao exercício das competências deste ou de qualquer de suas Casas ou comissões;

c) ao Tribunal de Contas da União, visando ao exercício das competências deste;

d) ao órgão judicial competente, visando à aplicação de penalidade por infrações cometidas contra as normas de proteção à infância e à juventude, sem prejuízo da promoção da responsabilidade civil e penal do infrator, quando cabível;

XIX – promover a responsabilidade:

a) da autoridade competente, pelo não exercício das incumbências, constitucional e legalmente impostas ao Poder Público da União, em defesa do meio ambiente, de sua preservação e de sua recuperação;

b) de pessoas físicas ou jurídicas, em razão da prática de atividade lesiva ao meio ambiente, tendo em vista a aplicação de sanções penais e a reparação dos danos causados;

XX – expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis.

Vamos então ao argumento do MP. O inciso VII do art. 6º – que é o único que fala do inquérito civil público – diz que tal instrumento é aplicável nas hipóteses ali elencadas: defesa do consumidor, do meio ambiente, comunidades indígenas e proteção de direitos constitucionais. Portanto, segundo o MP, estando o Direito Eleitoral entrelaçado com direitos constitucionais, eis ai a autorização legislativa para proceder ao ICP.

Duas falhas neste argumento. A primeira: Se o inciso art. 6º, VII, a, autorizasse o manejo de ICP eleitoral, autorizaria também, como consequência natural, o manejo de Ação Civil Pública Eleitoral, o que seria uma aberração jurídica sem tamanho. Segundo: As atribuições do Ministério Público ELEITORAL não decorrem da alínea a do inciso VII do artigo 6º da LCP 75/90. Ao revés, estão descritas no artigo 72 da mesma lei, em dispositivos que não mencionam nem en passant o famigerado ICP:

SEÇÃO X

Das Funções Eleitorais do Ministério Público Federal

Art. 72. Compete ao Ministério Público Federal exercer, no que couber, junto à Justiça Eleitoral, as funções do Ministério Público, atuando em todas as fases e instâncias do processo eleitoral.

Parágrafo único. O Ministério Público Federal tem legitimação para propor, perante o juízo competente, as ações para declarar ou decretar a nulidade de negócios jurídicos ou atos da administração pública, infringentes de vedações legais destinadas a proteger a normalidade e a legitimidade das eleições, contra a influência do poder econômico ou o abuso do poder político ou administrativo.

Claro que, na ausência de qualquer outra norma, seria razoável a exegese dada pelo parquet. Tanto o art. 6º quanto o art. 72 são imprecisos. Nenhum deles dá claramente autorização à promoção de ICP e nem claramente o proíbe. Mas é exatamente essa imprecisão – e a ausência de consequente direito firme ao ICP pelo parquet – que autoriza interpretação por normas específicas. Afinal, norma específica se sobrepõe à geral naquela estreita seara da sua especificidade.

Portanto, a LCP 75 não assegura incondicionalmente o direito do MP se valer da ICP em qualquer seara e certamente não o faz na seara eleitoral. No estrito âmbito eleitoral, há claro dispositivo normativo proibindo o uso das ICPs. Ademais, o próprio MP passou todo o período eleitoral se valendo dos poderes que lhe confere a Lei no 7.347, tal como visível dos próprios documentos produzidos nas ICPs.

Disse e reafirmo minha posição quanto à inaplicabilidade de ICPs na seara eleitoral, pelos motivos já debatidos no post anterior.

Mas acrescento que pelo menos para uma serviu coisa a nova posição do MP: para mim, ficou claro que foram absolutamente surpreendidos com a limitação que o novo art. 105-a da Lei das Eleições lhes impunha.

5 comments to Repercussão, Terrorismo e a resposta do Ministério Público

  • Rodrigo César Barroso de Vasconcellos Dias

    Parabéns pelos post e pela belíssima discussão gerada, sem ofensas, sem mágoas e bastante saudável.
    Porém, gostaria de saber do ilustre Procurador, quais nomes ele considera justo para ocupar os cargos de governador e vice, prefeito e vice, vereadores e deputados? Quem sabe, com essa informação, saberemos em quem não votar e ele, o Procurador, teria menos trabalho.

  • PERGUNTA

    GOSTARIA DE SABER QUANTAS AÇÕES DESTA NATUREZA O PROCURADOR INGRESSOU CONTRA: MARCELO SERAFIM, SERAFIM CORREA E O DEPUTADO MARCELO, ACUSADO DE FALSIFICAR DOCUMENTO

  • Rodrigo César da Silva e Silva

    Caro Daniel,

    Contundente e assertivas as afirmações, ainda não havia sido levado a entender os pontos por esse prisma.
    A verdade é que foi possível acumular um conhecimento precioso de alto nível técnico nestes seus anos de advocacia eleitoral, seria importante para a classe de advogados que se enveredam pelo direito eleitoral terem um curso de reciclagem. Você já pensou em desenvolver um curso de capacitação nessa área??? Pensa na ideia, as eleições já não estão tão distantes assim…
    Se entender que seria bom, “coloca” meu nome lá!!!
    Cordialmente,

    Rodrigo César da Silva e Silva
    Parintins – AM

  • Thirso Del Corso Neto

    Saudade da época que o Blex era atualizado, pelo menos, semanalmente…

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Pronto. Atualizado!

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