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E quando o Fiscal da Lei ignora a lei?

Não há qualquer dúvida que o Ministério Público Eleitoral do Amazonas, comandado pelo diligentíssimo Edmilson Barreiros, adotou uma postura de ampla fiscalização e policiamento do pleito de 2010. Tanto é assim que o maior rival dos candidatos em ações judiciais – que antes eram, precipuamente, seus adversários nas urnas – passou a ser o MP.

Mesmo questionado numa seara conceitual qual seria o papel do MPE numa eleição (que, na minha opinião pessoal é o de resguardar a vontade democrática e não o de tentar cassar todos os eleitos), é inegável que o parquet eleitoral estabeleceu uma diretriz de atuação neste pleito e o perseguiu com todas as ferramentas possíveis.

Para exercer sua missão institucional, o Ministério Público Eleitoral instaurou incontáveis Inquéritos Civis Públicos contra diversos candidatos, visando apurar todo tipo de ilegalidade eleitoral. Com base nos poderes que lhe confere o Inquérito Civil Público (ICP), disparou inúmeras requisições a serem respondidas em prazos de 48 ou 72 horas, sempre lembrando gentilmente ao requisitado que o Art. 10 da Lei 7.347/85 diz constituir crime “a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos” tais como requestados. Ainda com esteio nos poderes do ICP, o Ministério Público Eleitoral ouviu testemunhas, requisitou diligências da Polícia Federal, determinou realização de perícias, enfim, tomou todas as medidas necessárias para fiscalizar candidatos e evitar a ocorrência de ilegalidades.

Com o conjunto de provas que o Ministério Público reuniu nos tais ICPs, promoveu inúmeras ações judiciais contra vários candidatos.

Tudo muito bonito, muito certinho, fiscalizando estritamente a aplicação da lei, correto? Infelizmente, não é bem assim. Na verdade, existe um pequeno probleminha com a linha de atuação adotada pelo parquet eleitoral.

É que as supostas “provas” produzidas pelo Ministério Público, nos múltiplos Inquéritos Civis Públicos que instaurou para compulsivamente investigar cada passo dos candidatos são de todo imprestáveis.

Tais Inquéritos Civis Públicos foram instaurados não apenas com desvio de finalidade, mas também em violação a expressa proibição legal.

A Lei 7.347/85, que criou a figura da Ação Civil Pública também criou o mecanismo do Inquérito Civil Público como seu antecedente. Diz a citada norma:

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)

I – ao meio-ambiente;

II – ao consumidor;

III – à ordem urbanística; (Incluído pela Lei nº 10.257, de 10.7.2001) (Vide Medida provisória nº 2.180-35, de 2001)

IV – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; (Renumerado do Inciso III, pela Lei nº 10.257, de 10.7.2001)

V - por infração da ordem econômica e da economia popular; (Redação dada pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001)

VI - à ordem urbanística. (Redação dada pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001)

Parágrafo único.  Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados. (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001)

(…)

Art. 8º Para instruir a inicial, o interessado poderá requerer às autoridades competentes as certidões e informações que julgar necessárias, a serem fornecidas no prazo de 15 (quinze) dias.

§ 1º O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis.

(…)

Art. 10. Constitui crime, punido com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, mais multa de 10 (dez) a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional – ORTN, a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público.”

Da própria redação de lei 7.347, percebe-se que não há previsão normativa para ICP em matéria eleitoral. Há uma corrente doutrinária que sustenta que o Ministério Público, sendo um órgão administrativo, está adstrito ao princípio da legalidade estrita, não lhe sendo lícito agir de modo que a lei não permita. Segundo tal corrente (admitidamente minoritária) da própria redação da lei 7.347 emanaria ser incabível o ICP para questões eleitorais.

Nada obstante, não se trata aqui de mera questão de impedimento formal que a legalidade estrita impõe a um estado de anomia.

Ao revés, há expressa proibição legal de utilizar o ICP no âmbito eleitoral. É que o artigo 105-A da Lei 9504/97, introduzido pela Lei 12.034/2009, diz expressamente que:

Art. 105-A.  Em matéria eleitoral, não são aplicáveis os procedimentos previstos na Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985.

A teleologia dessa proibição é evidente: evitar a utilização de procedimentos inquisitoriais e unilaterais para a produção de “provas” não submetidas ao contraditório.

A proibição de utilizar ICP não significa de modo algum a subtração do poder de investigação do Ministério Público. É que, no âmbito eleitoral, o Ministério Público conta com o instrumento de Investigação Judicial Eleitoral exatamente para investigar a prática de potenciais ilicitudes. No entanto, por opção legislativa em decorrência da própria natureza do período eleitoral, a investigação nesta seara não é por meio de mecanismos inquisitoriais unilaterais; ao revés, ocorre sob a supervisão do Poder Judiciário Eleitoral. Noutras palavras: os ICPs são proibidos pois, em razão do potencial lesivo ao próprio certame eleitoral do uso indevido dos instrumentos unilaterais de investigação, a própria investigação precisa ser justificada e realizada sob o controle de um Magistrado.

No pleito de 2010 o Ministério Público Eleitoral simplesmente decidiu ignorar a proibição legal de instaurar ICPs para apurar matérias de natureza eleitoral. Ao invés de manejar Investigações Judiciais e submeter suas requisições ao controle judicial, resolveu atuar por conta própria, aterrorizando inúmeros servidores públicos com incontáveis requisições, onde os ameaçava com o crime do art. 10 da Lei 7.347 caso não atendida a ordem.

Vai ser interessante ver como o Poder Judiciário Eleitoral vai tratar essa atuação contra legem do Ministério Público. Mais interessante vai ser ver qual a tese que o parquet vai usar para justificar o emprego dessas provas obtidas em expressa violação à lei.

Há quem defenda que, caso as provas sejam adequadamente repetidas em juízo, não há problema de utilizar provas angariadas via ICP em juízo. Segundo essa teoria, a violação ao regramento legal se resolveria no âmbito disciplinar do profissional que utilizou indevidamente o instrumento. Não é essa, a meu sentir, a solução correta. Honestamente acredito que a violação ao art. 105-A da Lei 9504/97 se esgota no desentranhamento das provas produzidas em expressa contrariedade à proibição legal.

De qualquer modo, o Ministério Público já promoveu todas as ações cíveis eleitorais que poderia e a defesa de muitos candidatos está debatendo este tema. Agora é só aguardar e ver o que é que faz a Justiça quando o fiscal da lei ignora abertamente a própria lei que deveria fiscalizar.

13 comments to E quando o Fiscal da Lei ignora a lei?

  • SOUSA

    GOSTARIA DE SABER O ANDAMENTO DESSAS DECISOES. BASTANTE INTERESSANTE SUA POSICAO ACERCA DO PROBLEMA ORA RELATADO.

  • Jefferson Leite

    Parabens pelo artigo…

  • mario silva

    Dr. Daniel, tem uma matéria sobre o senhor no BLOG DO ANTONIO ZACARIAS (WWW.ANTONIOZACARIAS.BLOGSPOT.COM). É UM TEXTO MUITO BACANA.

    ABRAÇO DO SEU ADIMIRADOR MARIO SILVA

  • Leo

    Já leste a resposta do MPF? e a legislação por ele citada?
    abs

  • Paulo

    Esclareça-me sobre a seguinte dúvida: O senhor está dizendo, se bem entendi, que, por ser um período eleitoral, o MPE deve deixar de lado sua prerrogativa constitucional de independência investigatória – a fim de vigiar a lisura na prática dos procedimentos, mediante a prescrição das normas legais vigentes no país -, para submeter-se ao crivo de um juíz que ditará os procedimentos que o MPE deverá tomar para consubstanciar seu ofício constitucional?

  • constitucionalista

    Via interpretação sistemática, verifica-se que a norma está em dissonância com o postulado constitucional que propõe o combate à improbidade administrativa e a proteção do patrimônio público e social, dos quais a lisura do pleito é correlato.
    A Constituição Federal consagra os princípios da moralidade, da probidade, o princípio democrático e a coibição ao abuso do poder político e econômico. A redação do artigo 105-A, Lei 9.504/97, vai totalmente de encontro a tais desideratos. Trata-se de norma incompatível com a Carta Mãe e, portanto, inconstitucional.
    Foge à lógica limitar o raio de ação do Parquet. É como acorrentar os agentes Ministeriais e deixar à sorrelfa a lisura do pleito eleitoral, no qual toda sorte de arbitrariedades tende a ocorrer. É o mesmo que “amarrar alguém a uma cadeira e dizer que não se lhe retirou o direito de ir e vir” Petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 0004382, Partido Democrático Trabalhista, p. 47.
    Se ao Ministério Público incumbe zelar pelo patrimônio público e social, considerado interesse difuso e coletivo, a norma, ao decepar o procedimento previsto na Ação Civil Público retira-lhe o dever constitucional em franco menosprezo à atividade ministerial.

  • Rafael Dólio

    É uma ótima tática pra um advogado eleitoral (bem como de quamquer outra área): não encontrando no mérito soluçao para salvar seus clientes; sabendo que a maioria é culpada…PROCURA-SE BRECHAS NA LEI!!! Vamos, fuça, fuça, fuça…
    ENCONTREI. Agora o próximo passo é atacar o adversário. Desmoralizá-lo. Jogar com a opnião pública. No final, fazer um desafio, o povo gosta de desafios. E assim se constrói a política de nosso país.
    NÃO ADIANTA QUALQUER BESTEIRA QUE VOCÊ FALE, O POVO VÊ NO DR. EDMILSON COMO UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL A ÚLTIMA ESPERANÇA NA POLÍTICA LOCAL. CERTAMENTE NENHUM SERVIDOR SE SENTIU AMEAÇADO DA FORMA COMO FOI POSTO AQUI.
    Continue defendendo os corruptos, que a sociedade continuará admirando aqueles que têm coragem para enfrentar os grandes coronéis.
    DUVIDO PUBLICAR, Agora é só aguardar e ver o que é que faz(…)

  • Ricardo

    Acho que o que o Dr. Daniel quis dizer é simplesmente que o MPE também está submetido à lei.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    A todos que comentaram: pretendo preparar até amanhã (01/02) um post sobre a repercussão deste, sobre a resposta do Ministério Público e sobre alguns dos questionamentos levantados aqui. Obrigado a todos pelo comentários pois o debate só se constrói com a junção de vozes convergentes e dissidentes.

  • Marcos

    Dr. Daniel, excelente discussão. Trago à baila a lição do Mestre Thales Tácito Cerqueira (Promotor de Justiça e Eleitoral de Minas Gerais, in Reformas Eleitorais Comentadas, São Paulo, Saraiva: 2010, pp. 665, 666):

    Em matéria Eleitoral, com a Lei n. 12.034/2009, não será mais possível o manejo de Inquérito Civil (IC) e procedimento preparatório, com vista às ações eleitorais (AIRC, AIJE, AIME, RCD, Representações dos arts. 30-A, 41-A, 73/77 e 81, todos da Lei Eleitoral etc.)
    [...]
    Tema realmente polêmico é a possibilidade do Ministério Público poder (ou não) instaurar procedimentos administrativos e inquéritos civis em matéria eleitoral. Antes da Lei n. 12.034/2009, sustentávamos que a regra era pela possibilidade, desde que fossem respeitadas as garantias fundamentais, entre elas, o acesso de “provas já documentadas” aos advogados, por força da Súmula vinculante n. 14 do STF.

    Na época, antes da Lei n. 12.034/2009, apesar de não discordarmos da aplicação (parcial) dos procedimentos da Lei da Ação Civil Pública em matéria eleitoral (IC e procedimento preparatório), não recomendávamos esses procedimentos [...]

    Não vislumbramos inconstitucionalidade na lei, até porque, como dito, os instrumentos da legislação eleitoral têm prazos exíguos e decadenciais e permitem a legitimidade do MInistério Público Eleitoral (exceto art. 30-A, mas deve ser feita interpretação conforme a CF/88 para incluí-lo [...])

    Portanto, ações civis públicas com reflexo eleitoral poderão ser propostas na Justiça Comum. O que se impede são ações civis públicas eleitorais para restringir, no período eleitoral, o que a legislação eleitoral permite.”

    Note-se as lúcidas ponderações levadas a efeito pelo membro do parquet eleitoral e emérito doutrinador da seara eleitoral.

    Que o Dr. Edmilson tem sido um defensor incansável da lisura do processo eleitoral não se questiona. A sociedade reconhece. Porém, a defesa do estado democrático de direito se mostra da mesma forma imprescindível. Essa conquista precisa ser defendida por todos, advogados, magistrados, governantes … e o Ministério Público, principalmente.

    É a nossa singela contribuição.

  • Carlos Alberto

    Caro blogueiro:
    No sétimo parágrafo do seu texto, é dito que os ICP foram instaurados “não apenas com desvio de finalidade, mas também em violação a expressa proibição legal”.
    Seu artigo deixa clara sua opinião sobre a suposta violação da lei.
    Mas e o citado “desvio de finalidade”? Explique, por gentileza, como o mesmo teria restado configurado.

  • Paulo Victor

    Ok, entendi seu ponto de vista. Os ICPs não podem ser utilizados na seara eleitoral. Mas daí requerer a nulidade de todo processo é um tanto quanto irrazoável e desproporcional, não? O direito possui diversos casos de nulidade, anulabilidade e meras infrações (das quais encontramos diversos exemplos no CPP. Se o autor puder trazer para discussão de uma unica doutrina ou jurisprudência que ampare seu ponto de vista, que implique em tão grave sanção (desentranhamento de provas – leia-se nulidade de todo o processo, talvez possa dar algum crédito ao texto.

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