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Justiça, Sombra e Água Fresca.

Como advogado por vocação, tenho uma reação quase pavloviana quando me deparo com qualquer argumento jurídico: penso no que diria se estivesse advogando a posição contrária. Faço isso, inclusive, nas causas que defendo. Tento sempre antever quais os argumentos que serão utilizados pelo lado contrário. Afinal, poucas coisas no direito são preto e branco, absolutamente correto versus absolutamente errado. A grande maioria das discussões se firma numa imensa área cinza que separa esses dois extremos.

Essa minha prática de reconhecer e respeitar os argumentos de ambos os lados deixava meus alunos desnorteados no início de cada semestre. Acostumados a professores que ditavam o que é o certo e o que é o errado no direito, ficavam confusos a primeira vez que debatíamos em sala de aula algum tópico controvertido na doutrina ou na jurisprudência. Nesses casos eu explicava que uma ação poderia razoavelmente ser proposta com base na tese A enquanto a mesma ação poderia ser razoavelmente defendida com sustentáculo na tese B. Fatalmente, um aluno levantava a mão e fazia a clássica pergunta: “Professor, qual a corrente que é a correta?”

Minha resposta era sempre a mesma: “Depende de quem é o meu cliente”.

A turma sempre ria um pouquinho, mas invariavelmente alguém insistia: queria saber mesmo qual era a tese em que eu acreditava ser a correta. Essa era oportunidade – que se repetia a todo semestre – que eu utilizava para introduzir o “teste da cara-vermelha”. Explicava aos alunos que, no direito, era muito comum existirem duas ou mais respostas plenamente defensáveis para o mesmo problema jurídico. É claro que existem argumentos que, de tão esotéricos ou equivocados ou até absurdos, um advogado que se respeita teria vergonha de defender. Eu não conseguiria defender uma tese absurda dessas numa sustentação oral, por exemplo, pois meu rosto ficaria completamente vermelho de vergonha. O que o advogado precisa fazer é descartar as teses que não passem no teste da cara-vermelha e utilizar aqueles debates teóricos sérios e defensáveis que sirvam aos interesses de seus clientes. A opinião pessoal do advogado, neste ponto, é irrelevante. Minha interpretação pessoal sobre divididas jurídicas só tem importância quando oficio como árbitro ou quando escrevo aqui no bLex. Na prática forense, desde que respeitada coerência com posições anteriormente adotadas, tenho o dever de defender meu cliente como argumentos razoáveis e defensáveis, independentemente da minha posição íntima sobre o assunto. Não poderia, também, como professor, ditar para os alunos qual tese que acredito correta contando com a hipótese de um dos acadêmicos vir a ser magistrado. Primeiro, porque acredito piamente que o produto de uma faculdade de direito deve ser um bom advogado. Segundo, porque compete ao próprio aluno confrontar os argumentos de lado a lado e chegar ele mesmo à conclusão do que acredita correta.

De qualquer modo, e fechando minha tangente para voltar ao tema do post, registro que tenho muita admiração por quem é capaz de trazer à mesa de discussão argumentos sérios que não consegui antever. Nutro enorme respeito profissional por magistrados, promotores e até advogados ex adversos meus que, mesmo ao contraditar meus interesses, o fazem com base em teses jurídicas sólidas e defensáveis que não enxerguei como vias possíveis de desconstrução dos meus argumentos.

Fiz a introdução acima porque na semana passada, quando vi a notícia da regulamentação do CNJ que obriga o respeito do horário mínimo de atendimento ao público das 09 as 18h por todos os órgãos da Justiça Brasileira, exercitei minha reação natural e tentei adivinhar quais seriam os argumentos de oposição do Judiciário. Foi fácil imaginar, de pronto, que alegariam obstáculos de natureza administrativa e orçamentária. Também esperava alegações diversas de inconstitucionalidade da regulamentação. Do mesmo modo, achava que os Tribunais Estaduais fossem reclamar da ausência da vacatio legis da norma (pleito que tenho como válido, vez que a repentina posição do CNJ não permitiu o planejamento prévio e respectiva preparação por parte dos gestores dos órgãos jurisdicionais).

No entanto confesso que não tive capacidade de antever o argumento utilizado pelo Presidente do Colégio Permanente de Presidentes dos Tribunais de Justiça, desembargador carioca Marcus Faver. Segundo reportagem do Jornal O Globo, publicada neste link, além das previstas questões legais e constitucionais, o citado magistrado teria utilizado a seguinte desculpa para justificar o horário diminuído:

- Há estados no Norte e no Nordeste que têm o costume de anos, em razão do calor, de começar seus expedientes às 7h. Eles têm o costume de fazer a sesta em razão do calor também. Isso é um costume tradicional nessas regiões e que tem suas razões de ser. É complicado, no calor, você respeitar o horário estabelecido (pelo CNJ)

(…)

– O ideal seria que a gente pudesse ter uma legislação uniforme. Mas é um risco você desrespeitar as tradições locais. O Piauí tem um calor intenso de 12h às 15h, é quase impraticável trabalhar.

De fato, apesar de não se ter noticia se o Desembargador falava em nome próprio ou estavam apenas explicitando a posição oficial do Colégio que representa, acredito que é necessário endereçar seu relevante argumento. Afinal de contas, não se pode esperar que os Magistrados, como membros de uma casta diferenciada e superior ao resto da sociedade, sejam sujeitos às mesmas intempéries que assolam, por exemplo, um reles advogado. Afinal, ele, os advogados, para cumprirem seus prazos, têm mais é que se sujeitar à prática desumana de trabalhar no escritório à tarde com o ar-condicionado ligado, enquanto queima um sol assolador lá fora. Mas tal conduta, por óbvio, é indigna da respeitabilidade da magistratura e dos serventuários da justiça que, não se pode esquecer, passaram em concursos públicos.

Nem se fale de comparar os magistrados com, por exemplo, o trabalho dos operários que, em pleno sol, estão trabalhando duro Brasil afora. Se ambos fossem iguais perante a lei, à luz do argumento do Desdor. Faver, seria imperioso declarar inconstitucional – por ferir o princípio da dignidade humana – qualquer jornada de trabalho de ao ar livre das 14:00 às 18:00 em qualquer lugar do Norte ou Nordeste do Brasil. Do ponto de vista lógico, só se pode justificar a legalidade do trabalho do operário ao sol e a irrazobilidade do trabalho do magistrado em gabinetes com ar-condicionado se aceitarmos como válida a premissa de que Magistrados e serventuários, por comporem um classe especial de cidadãos, merecem proteção jurídica distinta.

No entanto, venho para o argumento desarmado, com espírito conciliador. Acredito que devamos encontrar soluções que atendam tanto aos argumentos do Desdor. Faver quanto aos anseios da sociedade expressados pela regulamentação do CNJ. Nesse sentido, tenho algumas sugestões:

1. Permitir aos magistrados que optem entre a tradição e a modernidade. Com todo o devido respeito ao Magistrado que defende a questão do calor, mas seu argumento cai por água abaixo ante uma maravilha moderna chamada de condicionador de ar. Tudo bem que o Desembargador evocou questões relativas à tradição e claramente não podemos ignorar esse aspecto. Eis portanto, uma solução conciliatória: permitir a cada magistrado e serventuário que opte entre a tradição e a modernidade. Os que escolherem a última hipótese devem trabalhar entre 09 as 18h, respeitada sua jornada, e podem fazê-lo com o uso do ar condicionado. Já os tradicionalistas tem a opção de trabalhar só das 07:00 às 13:00, mas se assim optarem devem respeitar a tradição como um todo. A Justiça separa para os tradicionalistas uma sala do fórum desprovida de qualquer sistema de ar-condicionado, como as que eram tradicionalmente disponíveis na época em que o horário diminuído se justificava. Assim, quem quiser as conveniências do mundo moderno, pode optar por trabalhar no horário de Judiciário moderno. Quem preferir se apegar às tradições poderá trabalhar a manhã inteira no calor até o horário em que o sol fique insuportável, sem precisar abrir mão de seus valores tradicionalistas. Todos ganham, todos ficam felizes.

2. Institucionalizar, para esse povo do Norte e Nordeste que adota costumes tão antiquados, algo mais europeu. Importante perceber que o argumento ora discutido não se baseia apenas no calor, mas também na necessidade de respeitar a sesta de depois do almoço. De fato, não podemos simplesmente descartar um fenômeno cultural de tanta valia. Mas é possível resolver tanto o problema do sesteiros quanto o do CNJ: Adotar o modelo espanhol. Os espanhóis levam a sério essa coisa de sesta, como elemento importante de sua identidade cultural. Muito embora em tempos modernos a Espanha esteja abandonando a prática por conta da tal globalização, até 2005 o Governo espanhol fazia respeitar a sesta de seus funcionários públicos. Todos iam trabalhar às 9:00 e encerravam o expediente às 14:00, na linha do modelo brasileiro. No entanto retornavam ao serviço às 17:00 e ficavam até o fechamento das repartições públicas, lá pelas 20:30h. Nesses locais onde, segundo o Desdor. Faver, o calor impede o trabalho enquanto está quente, o CNJ poderia abrir exceção e adotar o modelo espanhol. Permita que os sesteiros retornem para terminar sua carga de trabalho até à noitinha, quando sol se põe e o clima fica ameno.

3. Aliar instrumentos modernos às práticas milenares de combate ao calor. Vamos ser criativos na busca de soluções para o calor. Afinal de contas, não é um problema moderno. Os faraós egípcios, por exemplo, eram obrigados a trabalhar em temperaturas tão altas que a Justiça do Norte e Nordeste não consegue nem imaginar. Mas resolveram o problema com eficiência usando um modelo que, com poucas adaptações, é viável nos dias atuais. Basta criar uma nova modalidade de pena alternativa visando impor ao apenado o dever de preservar, por algumas horas por dia, o conforto térmico do magistrado. Com isso em mente, é fácil visualizar uma adaptação das imagens abaixo para os dias atuais:

Entenderam o conceito?

Ironias à parte, li as declarações do Desdor. Faver como uma afronta à trabalhadora sociedade brasileira, mormente aos meus conterrâneos do Norte e Nordeste. Tenho esperança que o pensamento externado pela declaração citada – e as premissas encontradas nas suas entrelinhas – não seja representativo do pensamento de todo o Judiciário.

Os argumentos que apresentei na segunda parte deste post – se tivessem a mais remota seriedade – teriam me deixado profundamente envergonhado. No entanto, é apenas com bom humor que posso pretender discutir uma declaração aparentemente séria mas que jamais teria passado no meu critério pessoal do teste da cara-vermelha.

11 comments to Justiça, Sombra e Água Fresca.

  • Fabricio Marques

    Só mesmo com muito bom humor, pra encarar o “injustificável” motivo apresentado pelo ilustre magistrado. Decerto ele não conhece a técnica do teste da “cara-vermelha”… Parabéns, Daniel!

  • Fernando Todeschini

    Meu amigo Daniel. Juro que passei algum tempo pensando em tecer alguns comentários sérios acerca do tema, mas, infelizmente, só consigo reproduzir minha reação ao ler seu post:

    KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK!!!!!!!

    Essa é a chamada “Teoria Restartiana” da civilização (ou falta dela) do norte do país.

    E agora peço licença para tirar minha sesta, afinal já são 15h40 e o calor está de matar, não consigo mais trabalhar.

  • Marco Aurélio de Lima Choy

    Na esteira da discussão calor x atendimento caberia a adoção de medidas como abolir o paletó e a gravata na terra onde ainda há juízes que ainda exigem “vestes talares”, como já ocorre no Rio de Janeiro do ilustre Presidente do Colégio. Com a palavra a OAB/AM…

  • Rafael Bertazzo

    Concordo com o Choy. Inclusive em outros Estados a OAB foi mais ativa e ingressou com Ações Civis Públicas para abolir paletó e gravata nos fórum em épocas de verão intenso.

    Só de pensar andar de terno e gravata aqui na nossa terra entre os meses de julho a outubro eu já fico suando.

  • Rodrigo Dias

    Todeschini, você foi bem pertinente ao suscitar “Teoria Restartiana”. Essa foi demais. Um novo termo pro velho preconceito e falta de estudos de um determinado povinho que olha o Brasil assim: tudo que estiver acima de Brasília, é norte e nordeste (tanto faz) e não tem nada demais.
    Quanto ao comentários do Desembargador, são lamentáveis.
    Na justiça federal o horário de expediente é continuo e ininterrupto até onde lembro, e qual a diferença das pessoas da Justiça Federal para as da Estadual??? Por um acaso, nós advogados só trabalhamos até as 14, 15, 16 ou 17:30? Só até sexta-feira? Temos férias regulares? Recesso? 13º terceiro? NÃO. E nem por isso ficamos a choramingar algumas horas a mais no expediente de trabalho.

  • Caio Ferraz

    Quando vi o texto achei muito grande e quase desisto de ler. Ainda bem que continuei e cheguei no pedaço maravilhoso escondido no meio. Bom Demais. Não é pra qualquer um fazer humor seco e inteligente com tanta crítica subtendida. O autor como sempre escreve texto agradável que esconde bela provocação ao pensamento.
    Agradeço o texto. Nós da Bahia já temos a fama de preguiça e vem um desembargador do Rio do Janeiro propagar o mito. Alguém precisava responder e a resposta de Dr. Daniel foi bem à altura. Vou imprimir o texto e levar muitas copias para a faculdade para dar para colegas e professores.

  • Marcio Luiz Freitas

    Caro Daniel,
    Quanto à questão do horário do Judiciário, não me resta muito a comentar, seja porque o post realmente está ótimo, seja pq aqui na JF (inclusive no Piauí) já há atendimento ao público de 9 às 18 (embora eu ache que talvez fosse bom convidar o Desdor. a assistir uma sessão do TRE/AM meio-dia, para que ele pudesse, talvez, rever alguns conceitos. Em algumas dessas sessões, mesmo de toga e paletó, fiquei morrendo de frio).
    Mas o que me chamou atenção mesmo foi o início do posto. Não sabia que vc era um tão kelseniano! Ah, e antes que algum desavisado ache que isso é uma ofensa, relembro que Kelsen, verdadeiro marco divisor do direito, faz uma separação rígida entre a atividade do aplicador do direito, que cria normas (legislador, juiz, funcioário público), e a atividade do cientista do direito, que faz proposições sobre as normas. Para ele, a atividade de criação da norma (seja a lei ou a sentença) é um ato de vontade, de modo que dentro dos limites de interpretação da lei, qualquer interpretação é igualmente correta, de modo que ao cientista do Direito não cabe dizer qual é a opção correta, mas unicamente indicar quais as opções possíveis. Forte abraço.

  • Francisco Balieiro

    Daniel, nenhum Poder da República é mais reacionário e está mais dissociado da realidade que o Poder Judiciário. A Posição do Desembargador Favre, muito bem ilustra, aquilo que é cultural no Judiciário: aceitaos todas as mudanças, des que não nos afetem. Aqui pertinho de nós, no Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas, tem ma prática muito comum. Na sessão de ontem do TRE, na leitura do expediente administrativo, a Ilustre Presidenta deu conhecimento à Corte Eleitoral que pela 3a. vez consecutiva o Tribunal de Justiça publicou Edital para inscrição de advogados para compor lista de suplentes e Juízes do TRE da Classe de advogados (também cohecidos com juristas). Dentre outras razões para o desiteresse, o maior, sem nenhuma dúvida é que aqui no TRE do Amazonas somente se o Titular estiver doente é que chamam o suplente. Acontece que nunca adoecem. E els nunca faltam, não viajam? É o ponto onde eu queria chegar. Viajam, ausentam-se sim. Mas assim como também acontece com os demais membros da Corte, sejam Juízes de Direito, Juiz Federal ou Desembargadores, quando isto vai acontecer, com antecedência previnem-se e antecipam ou adiam a data da sessão ordinária e assim também o horário. Com o devido respeito que tenho por todos os pares, isto não é republicano. Todos sabem que as sessões ordinárias plenárias do Supremo Trbunal Federal ocorrem a partir das 14:00 horas, todas as quartas e quintas-feiras. Todos sabem que as sessões ordinárias do Tribunal Superior Eleitoral ocorrem às terças e quintas-feiras, a partir da 19:00 horas. O Jurisdicionado, os advogados do Brasil inteiro sabem que isto é dogmático, só a excepcionalidade autoriza alguma mudança. Aqui no TRE do Amazonas, infelizmente não é assim. Se algum membro vai viajar, a sessão ordinária muda de dia ou de horário para que possa estar presente. É o Tribunal funcionando no interesse de seus membros. Coitado dos advogados. O TRE deve definir de uma vez por todas os dois dias da semana das sessões ordinárias e o horário das mesmas e, somente na excepcionalidade alterá-los. Viagem de membro da Corte ou do Ministério Público Eleitoral não tem essa natureza de excepcionalidade, de modo que a mudança de dia e horário das sessões ordinárias caracteriza-se num injusto e indevido privilégio. E aí não sabem porque não encontram suplente. Pra quê, se o suplente nunca é convocado?

  • Fábio Lindoso e Lima

    LMAOL

  • Saulo de Omena Michiles

    Muito boa a ironia! Mas acho que no argumento do Desembargador falta uma questão tão importante quanto à da sesta. Sabe-se (ao menos no Sul e Sudeste do país) que nos Estados do Norte chove diariamente entre 15h-16h e só se marca compromisso após a chuva. Portanto, o expediente deveria ser adequado para se adaptar, além da sesta, a chuva vespertina…
    Brincadeiras à parte, suas palavras sobre calor, tradição e cultura européia me fizeram lembrar do nosso querido paletó. Eu, que milito em Brasília, muitas vezes sofro com o calor ao me deslocar para os tribunais e, até mesmo, dentro deles, só não me permito reclamar porque lembro de meus colegas amazonenses. Sinceramente, acho que poderíamos rever a tradição da vestimenta européia e mantermos uma indumentária formal, mas adaptada ao clima tropical de nosso país.

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