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Da Desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro

Tema que, embora não seja novo, sempre gera interessante debate jurídico é o da desconsideração da personalidade jurídica, motivo pelo qual o trago à baila sabendo, desde logo, que  muitos desaprovarão minha visão, mas como sempre digo, a discussão e o contraponto são alguns dos objetivos do bLex.

De antemão, importante suscinto intróito a respeito da teoria da personalidade da pessoa jurídica, adotada pelo direito pátrio, mesmo no Código Comercial de 1850 e reforçada no Código Civil vigente.

Por tal teoria, em regra, a pessoa jurídica legalmente constituída possui personalidade diversa de seus sócios, de sorte que os direitos e obrigações de cada um não se misturam, sendo patrimônios diversos.

Tal regra busca fomentar a exploração da atividade econômica, de suma importância ao desenvolvimento de qualquer nação, mitigando o risco inerente de tal atividade. È certo que a linha entre o sucesso e o fracasso na exploração de atividade comercial é tênue, o que tornaria essa aventura pouco interessante se o insucesso da pessoa jurídica afetasse diretamente o patrimônio dos sócios, mesmo que não vinculados à exploração da atividade.

Contudo, como todo e qualquer direito previsto pelo ordenamento pátrio, seu gozo há de ser efetuado nos estritos termos dispostos, não podendo servir como anteparo para o enriquecimento sem causa de quem, fazendo uso da previsão legal, dilapide o patrimônio da empresa para o seu enriquecimento pessoal.

Trata-se de um direito de mão dupla,  o sócio mantém seu patrimônio apartado do da empresa quanto às dívidas se teve este mesmo acuro quanto aos créditos. Para evitar o locupletamento dos sócios, há no Código Civil a previsão expressa de que se permita a desconsideração da personalidade jurídica, alcançando-se os bens dos sócios, quando estes agem com má-fé ou no mínimo violam a boa-fé objetiva, no afã de se locupletar.

As hipóteses elencadas no artigo 50 do Código Civil permitem a percepção, de forma muito nítida, que a teleologia da norma é no sentido de evitar o mau uso da personalidade jurídica.

Indiscutível que não há a necessidade, segundo pacificado entendimento do STJ, de que a desconsideração se efetive em processo próprio, podendo ser determinada no bojo de uma ação de conhecimento ou mesmo na fase na executiva desde que, por óbvio, seja efetivado contraditório especificamente quanto a tal questão.

Em suma, é perfeitamente possível que em uma ação de cobrança se determinada a desconsideração da personalidade jurídica sendo certo, contudo, que os sócios devem sempre ser ouvido a respeito para que possam exercitar o direito de tentar convencer o magistrado de que não se materializaram as hipótese legalmente previstas.

Sempre defendi a importância de tal instituto, mas destacando a indispensável necessidade de que o magistrado demonstrasse o maior acuro possível em seu uso, sendo mais uma daquelas situações em que a razoabilidade há de imperar sob pena de que, no afã de se evitar um mal, se pratique outro da mesma proporção.

Nesta esteira de razoabilidade, impossível não se constar os absurdos ocorridos em processos que discutem relação de consumo e processos trabalhistas. Importante reconhecer que quanto àqueles o absurdo é legislativo, enquanto nestes o absurdo é de ordem prática.

Explica-se, o CDC tem a previsão  de uma desconsideração da personalidade completamente alijada do escopo do nascimento do instituto, visto que dispensa o ardil locupletativo previsto nas teorias de sua gênese e arrostados no CC/03.

O caput do artigo 28 do CDC repete, em outras palavras, o que preceitua o Código Civil, fazendo uso de expressões do tipo: “ abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.”

È a previsão contida no parágrafo 5º do referido artigo que causa estranheza:  “§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”

Em tal hipótese é completamente desnecessária a apresentação de qualquer elemento volitivo em causar prejuízo a outrem ou de se enriquecer ilicitamente, bastando haver obstáculo ao ressarcimento do consumidor para que a desconsideração seja possível. Aqui o mau gestor, aquele que quebra porque um produto mais moderno, melhor ou mais barato entrou no mercado, aquele que foi engolido por um gigante do ramo explorado, responde com seu patrimônio pessoal. Trata-se, sem dúvidas, de desvirtuamento da teoria da desconsideração.

A mim parece ainda pior a prática corriqueira da justiça do trabalho, onde ao arrepio de qualquer permissivo legal se institucionalizou uma desconsideração automática, de forma que hoje em dia sequer se aguarda a frustração do pagamento da empresa, expedindo-se mandado de penhora e avaliação contra a empresa e seus sócios da mesma forma que se busca o bloqueio on line nas contas dos sócios.

A CLT tratou da responsabilidade patrimonial nos artigos 876 a 892. Contudo, é omissa quanto à responsabilidade secundária, devendo ser aplicado subsidiariamente o CPC. Ocorre que, em verdade, trata-se de questão não apenas de cunho processual, mas também material.

Em que pese respeitáveis vozes dissonantes, entendo que i) desconsideração da personalidade em hipóteses em que não houve fraude; e ii) sem enfrentar um procedimento próprio que respeite os princípios do contraditório e da ampla defesa, é verdadeiro absurdo jurídico praticado diuturnamente nos processos trabalhistas.

Repito, tenho a exata noção de que defendo ponto que muitos discordaram, mas, no mínimo, estou exercitando meu direito constitucional de estar errado. Para destacar, contudo, que ao menos em processos que não discutam relações de consumo e da justiça do trabalho, defendo posicionamento abalizado por decisões judiciais, destaco julgado noticiado no site do STJ , nos seguintes termos:

“ A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é clara no entendimento de que a personalidade jurídica de uma empresa não pode ser confundida com a pessoa jurídica dos seus sócios, a não ser que seja caracterizado abuso por parte da empresa. Neste caso, o credor pode reivindicar, judicialmente, ressarcimento ou indenização por meio do patrimônio dos sócios. Mas, apesar de pacificado, o tema ainda suscita dúvidas em tribunais de todo o país, o que motivou a sua rediscussão durante julgamento na Quarta Turma do STJ, ocasião em que o ministro Aldir Passarinho Junior ressaltou a necessidade de cautela na avaliação desses casos.

No julgamento em questão, a turma deu provimento a recurso especial interposto pelos antigos sócios da empresa Knorr Construções Ltda., do Rio Grande do Sul, para mudar acórdão do Tribunal de Justiça daquele estado (TJRS) referente a ação de execução movida pela Galvânica Baretta Ltda. Como o STJ acatou o recurso de Lars Knorr e de outros sócios da construtora, ficou extinta a execução que tinha sido determinada contra eles(…)

Para o relator do recurso no STJ, ministro Aldir Passarinho Junior, o tribunal não identificou motivos objetivos que caracterizassem a desconsideração da personalidade jurídica, motivo por que deu provimento ao recurso. De acordo com o ministro, “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard douctrine), conquanto encontre amparo no direito positivo brasileiro, deve ser aplicada com cautela, diante da previsão de autonomia e existência de patrimônios distintos entre as pessoas físicas e jurídicas”.

O relator lembrou, também, que a jurisprudência do STJ, em regra, dispensa ação autônoma para se levantar o véu da pessoa jurídica, mas somente em casos de abuso de direito, desvio de finalidade ou confusão patrimonial é que se permite tal providência. “Adota-se, assim, a ‘teoria maior’ acerca da desconsideração da personalidade jurídica, a qual exige a configuração objetiva de tais requisitos para sua configuração”, ressaltou.”

11 comments to Da Desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro

  • Filipe Bonates

    Meu Nobre Amigo, concoordo parcialmente com o seu post! Mas na minha visão a desconsideração da personalidade jurídica, é uma linha de ação a ser tomada com quem não cumpre com os seus deveres, obrigações e atribuíções.

    Respeitosamente

    Filipe Bonates

  • Há alguma obscenidade em meu comentário que ofendeu ao moderador ?
    J. Chase

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Chase,

    Não há qualquer comentário anterior para aprovação. Olhei até na lista de spam para saber se tinha sido erroneamente bloqueado pelo sistema automático, mas não estava lá. Aconteceu alguma falha. Peço que reenvies tua colaboração.

    Um abraço,

    Daniel

  • Priscila

    somente gostaria de parabenizar pelo artigo, haja vista que a desconsideração é um tema que ainda merece ampla discução jurídica. Me formei ano passado e este foi o tema de minha monografia.

  • Robervaldo

    Caro Dr. Ney,
    Como sempre, vejo com atenção este seu novo comentário, novamente dosado com o esmero e brilhantíssimo habitual, produto de seu magistério privilegiado.
    A propósito, o tema veio a calhar, posto que estou redigindo a monografia da minha Pós/CPC, motivo pelo qual peço-lhe a devida autorização para extrair trechos da referida obra, o que certamente fortalecerá minha base de argumentação, agora muito mais enriquecida, caso conte com sua anuência.
    Penhoradamente,

  • Eduardo Bonates

    O tema desconsideração da pessoa jurídica sempre dependerá de que lado da lide se encontra o causídico. Isto porque caso o advogado defenda uma pessoa jurídica vencida na lide, logicamente ele terá uma visão mais restritiva sobre o tema, de forma que o advogado da parte vencedora, no afã de garantir o crédito, sempre tentará se socorrer da forma que melhor lhe permita o adimplemento, aí inclusa a desconsideração.

  • Ney Bastos

    Caro Robervaldo,

    Fique a vontade, pode usar o texto em seu trabalho científico.

  • Saulo Michiles

    Muito bom o comentário, esclarecedor.
    Dou especial importância à parte introdutória, quando trata da razão desse instituto: o fomento da atividade econômica. É um dos muitos pontos em que o Direito interfere na esfera econômica e, de consequência, no desenvolvimento do país como um todo. Infelizmente, a intersecção entre as áreas do Direito e da Economia ainda é pouquíssimo estudada no Brasil. Quem sabe um dos nobres publicadores do bLex possam iniciar uma discussão em algum tema da área.
    Mais uma vez, parabéns!

  • Comentei de novo, e nada saiu.
    Será realmente um problema técnico ?
    J. Chase
    http://www.chase4077.wordpress.com

  • Ney Bastos

    Caro Saulo,

    Agradeço o elogio e destaco que tenho tido costumeira preocupação com o tema, já o havendo abordado em três outros pots: Avanço ou retrocesso? Direito & Economia e o Prêmio do Empregado; e Direito & Economia x Direito & Homem.

    Peço que dê uma olhada e se manifeste!

  • Saulo Michiles

    Caro Dr. Ney,

    Foi uma ótima surpresa descobrir que eu estava errado em meu comentário anterior, ao saber que o tema já havia sido abordado no bLex e mais de uma vez. Parabéns a todos os blogueiros!
    Espero que o tema volte a ser abordado e se for do interesse de vocês tenho algumas sugestões de questões interessantes sobre ele.

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