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Reforma e Anulação

A prática forense e o exercício de docência em processo civil e prática jurídica simulada têm me mostrado uma enorme dificuldade que alguns alunos e operadores de direito têm em discernir as hipóteses em que o recurso deve buscar a anulação da decisão recorrida e quando deve buscar a reforma.

É comum se verificar um pedido quando o cabível seria outro, o que não só demonstra um atecnicismo inaceitável aos operadores de direito como, mais que isso, pode gerar o não conhecimento do recurso, caso o julgador(s) se mostre mais afeito a questões formais.

Em que pese possíveis críticas à materialização da segunda hipótese, a de apego exacerbado ao formalismo, de certo que não estaria de todo errado, conforme se depreende do exemplo que darei mais adiante, sendo necessária, contudo, a apresentação sucinta das hipóteses indicadas.

Sendo o mais sucinto e claro o possível, uma decisão pode ser atacada por duas espécies de erro. O primeiro de aspecto formal, ligado a questões processuais e procedimentais, principalmente as preliminares de mérito elencadas no artigo 301 do CPC, seja por haver sido ignorado pelo julgador ou por haver sido vislumbrado em caso em que não se materializou.

Nesta situação há um erro formal, destacado da questão de mérito discutida no processo, sendo o chamado erro in procedendo. Aqui não se deve buscar a reforma da decisão, pois ela não será substituída por outra, mas tão somente anulada por não haver respeitado questões atinentes à forma como a jurisdição deve ser prestada. Na grande maioria das vezes (não podendo ser desconsiderada a hipótese do art. 515, 3) a anulação do julgado devolverá ao seu prolator a obrigação de proferir novo julgado.

De outro lado, a segunda espécie de erro não está ligada a vícios processuais, mas sim à questão de fundo do processo, ou seja, ao mérito. Aqui o que se discute é a mal aplicação do direito, ou seja, o erro in judicando.

O recurso, neste caso, não visa a anulação do julgado, formalmente correto, mas sim a “justiça” por ele praticada através da aplicação de norma equivocada, inadequada interpretação da norma etc.

Deve-se requerer, portanto, a reforma da decisão através da prolatação de novo julgado a substituir o recorrido, mesmo porque a prestação jurisdicional do primeiro julgador já se esgotou, o momento agora é de reanálise meritória por um órgão jurisdicional hierarquicamente superior.

Assim sendo, não é impossível que, ao interpor um recurso requerendo uma anulação de uma sentença por erro in judicando, o recurso não seja conhecido por falta de interesse recursal em face da impropriedade do caminho buscado, em que pese os ataques dos doutrinadores mais modernos a essa espécie de falta de interesse. O certo é que é no mínimo arriscado e  indiscutivelmente atécnico.

Conforme notícia retirada do site do STJ, foi prolatado interessante acórdão a respeito do tema, sob outro enfoque, mas dá importante lição a respeito do que aqui se apresenta:

“Não cabem embargos infringentes em decisão que anulou sentença por erro processual

Os embargos infringentes são incabíveis quando interpostos contra decisão não unânime que se limitou a anular sentença de primeiro grau, após constatar error in procedendo, ou seja, erro que se comete quando não são obedecidas determinadas normas processuais. Esse foi o entendimento unânime da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em análise de recurso interposto pela União contra julgado do Tribunal Regional Federal da 2° Região (TRF2).


No caso, trata-se de ação de usucapião no município de Paraty, Rio de Janeiro. A área objeto da ação, com extensão de aproximadamente 30.000 m², encontra-se, parte, em terreno de marinha e, parte, no Parque Nacional da Serra da Bocaina. A sentença julgou improcedente a pretensão, por considerar esses terrenos imprescritíveis para fins de usucapião.


Em apelação, o TRF2 determinou a anulação da sentença. O voto do relator vencido, além de concordar com a sentença, negou provimento ao recurso, pois os autores não conseguiram comprovar a posse da área. Já no voto vencedor, o terreno foi considerado particular e, em tese, usucapível. No entanto, seria necessária a citação do litisconsorte passivo, uma vez que, sendo a área particular, há hipoteca legal sobre ela feita após a criação do mencionado parque.


A divergência de fundamentos nos votos motivou a União a interpor embargos infringentes. O TRF2 entendeu serem inadmissíveis os embargos. Segundo a decisão, a lei que alterou o artigo 530 do Código Processual Civil (CPC) dispõe literalmente sobre a aplicação do recurso somente quando a decisão houver deliberado, no mérito, em desacordo com a sentença, e esta tenha sido apoiada, também no mérito, pelo voto vencido. O fato é que o julgado não se posicionou sobre o mérito; apenas limitou-se a anular a sentença e determinar o retorno dos autos à primeira instância.


Em recurso ao STJ, a União sustentou violação ao referido artigo do CPC, ao argumento de que os embargos deveriam ter sido conhecidos, porque em todos os votos – vencido e vencedores – foi observada ampla discussão sobre o mérito da ação.


Em seu voto, o relator, ministro Benedito Gonçalves, ressaltou que a questão de mérito presente no voto vencedor foi no sentido de apontar a viabilidade do direito à usucapião para prosseguir e concluir pela ausência de citação do litisconsorte necessário. Conforme o relator, os embargos são cabíveis quando houver desigualdade nas conclusões dos votos, e não diferença de fundamentação.

O relator entendeu que aceitar o recurso para a hipótese de a decisão anular a sentença criaria situação não prevista pelo legislador. No entendimento do ministro Benedito Gonçalves, aceitar essa hipótese seria confundir o juízo de anulação (aquele que cassa o ato jurisdicional sem substituí-lo) com o juízo de reforma (em que há substituição do provimento inicial). Nesse último caso, seria cabível a interposição dos embargos infringentes.”

 

3 comments to Reforma e Anulação

  • Zé Gramática

    Se há, de um lado, advogados que não sabem distinguir entre reforma e anulação da decisão recorrida, há, por outro lado, advogados que não sabem a distinção entre os adjetivos mau, o susbtantivo mal e o advérbio mal. A frasé retirada do texto acima: “o que se discute é a MAL aplicação do direito” tem no mínimo dois erros. Primeiro que “aplicação” é substantivo feminino e exige que o adjetivo com ele concorde em gênero e número. Segundo, ainda que “aplicação” fosse masculino, o adjetivo seria “mau” e não “mal”, que é ou advérbio ou substantivo, dependendo da situação sintática concreta.

    Para quem não entendeu nada do que escrevi acima, simplifico dizendo que o correto é: “o que se discute é a MÁ aplicação do direito” ou, alternativamente, “o que se discute é o direito MAL aplicado”.

    Se o autor prometer corrigir o “erro in scribendo” acima, prometo nunca mais confundir “erro in procedendo” com “erro in judicando”.

  • Rafael Bertazzo

    Perdoem-me alguns amigos e conhecidos que são advogados públicos, mas, de uma forma superficial, percebo que os embargos infringentes opostos no caso em tela teve um nítido e manifesto fim de procrastinar a relação processual, o que é lamentável.

    Por tal motivo que acho acertada a inovação proposta no anteprojeto do novo CPC, ao estabelecer ônus de sucumbência recursal.

  • Estudante

    Quero agradecer a iniciativa do Sr. Ney Bastos de prestar seus esclarecimentos sobre a matéria em tela, que é deveras útil ao saber Jurídico.
    Também convido seus opositores, a escreverem mais matérias jurídicas relevantes como esta, elevando nossos conhecimentos.
    Em caso de um pequeno erro, asseguro que não me manifestarei.

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