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Afasta De Mim Esse Cálice

Quem vive de fazer humor no país vive dias negros. A proibição de abordar a questão eleitoral representa grandes limitações de mercado aos humoristas. Além disto, a propaganda política está suprindo com folgas a ausência do assunto nos programas de humor. Há rumores de que grandes emissoras de televisão estudam manter o horário eleitoral gratuito na grade de programação mesmo após o pleito, o que seria grave ameaça à classe dos humoristas. Se existe um sindicato, este deve ser acionado prontamente.

Censura pura e simples. Em sua essência, é essa a definição mais justa que se pode dar à proibição feita aos programas humorísticos de fazerem piada sobre os candidatos ao pleito de 2010. Enquanto o TSE e o Poder Legislativo empurram um para o outro a responsabilidade pela proibição, o eleitor perde um importante instrumento para auxiliar na formação do conceito do candidato, de suas propostas de governo, seu perfil e suas idéias.

Depõe muito a favor ou contra o candidato o jeito como este lida com o humor. Acho que quem perde a habilidade de rir de si mesmo e de não se levar tão a sério tem muito pouco a oferecer ao país. E é salutar que o eleitor saiba como o futuro líder de uma nação recebe críticas, ainda que estas venham em uma embalagem divertida.

O humor contagia. Não há nada mais contagiante do que uma gargalhada e quando esta tem como pano de fundo algo tão importante quanto o processo eleitoral, estamos falando de uma epidemia necessária.

O humor nas eleições é uma espécie de cigarrinho de maconha da consciência política. Aquele mesmo, que Clinton e FHC dizem ter fumado, mas não tragado. Aquele mesmo, que dizem ser a porta de entrada para drogas mais fortes.

Embora não haja nada conclusivo relacionando os dois fatores, pesquisas indicam que muitos usuários de humor sentiram a necessidade de um barato mais forte e assim enveredaram por um caminho sem volta. Acompanhe o testemunho dado por um comicólatra político anônimo. Dados verdadeiros foram omitidos para resguardar a identidade do testemunhante.

“No começo era só de vez em quando. Gostava de uma piadinha aqui e outra acolá. Quando o assunto era política, então, eu me divertia mais. Aí começou o período eleitoral e a coisa foi ficando cada vez mais freqüente. Meus pais dizem até hoje que foram as más companhias. Cheguei ao ponto de não conseguir passar um diazinho sequer sem dar boas risadas dos candidatos. A coisa foi crescendo e foi pintando aquela curiosidade. Conversei com uns conhecidos que diziam que acompanhavam a política nacional há trinta anos e nunca ficaram viciados. Tomei coragem e parti para algo mais pesado: assisti ao horário eleitoral gratuito. No primeiro dia, só uns cinco minutinhos. Eram sensações novas e eu fiquei um pouco assustado com aquilo tudo. Quando dei por mim, já assistia de cabo a rabo. Mas não era suficiente, eu queria mais. Esmiucei propostas de governo, realizações em mandatos passados e trajetória política, ideologias e afinidades, comparava currículos e feitos. Até dos candidatos a vice eu queria saber. Eu não tinha limites. Tinha chegado ao fundo do poço.”

Não sei se o protagonista do testemunho conseguiu superar o drama da conscientização política. Pessoalmente, espero que não. O cidadão que ri das piadas que supostamente ridicularizam os candidatos certamente faz melhor juízo de valor da situação do que aquele que não tem acesso ao humor político. Claro que a primeira reação a uma (boa) piada é o riso. Mas depois a gente sempre se pergunta: Mas quem é esse cara, hein? Qual é a dele? De onde veio, para onde vai? Ouvi dizer isso ou aquilo. Seria verdade? Acho que vou me informar melhor.

É isso que, pelo menos até agora, não vai acontecer neste pleito. A ausência dos humorísticos na cobertura das eleições será sentida. Assim como milhares de brasileiros, me sinto um pouco menos preparado para exercer meus direitos políticos a contento. Muito me preocupa isso tudo. Não só porque fere um direito fundamental e porque é um largo passo rumo à censura, mas porque o eleitor perde o enfoque diferente que o humor dá ao assunto. E é esse enfoque diferente que muitas vezes faz despertar no eleitor a reflexão. Perde o eleitor, perde o país.

Os adeptos da teoria da conspiração diriam que isto tudo é parte de um grande estratagema para manter o eleitor eternamente alienado. Uma espécie de Matrix com cestas básicas e geladeiras. Mas isso é assunto para outro dia. Não é nada absurdo, mas vamos admitir – por hora – que foi só mais um caso de leseira baré made in Brasília. De qualquer forma, sou pela legalização ampla, geral e irrestrita.

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