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Entendendo o Anteprojeto do CPC: Incidente de Coletivização e Class Action Lawsuits

O processo civil brasileiro está num momento crucial. Todos assistimos ansiosos ao trabalho da Comissão de Juristas, que promete entregar em menos de seis meses um Anteprojeto científico, pensado pelos maiores processualistas do país, e debatido por vários setores da sociedade.

O primeiro produto de trabalho da Comissão de Juristas já formalizou e sistematizou alguns conceitos que, em grandes linhas, pretende incluir no Anteprojeto.

Três dos conceitos propostos – o Incidente de Coletivização, o Amicus Curiae, e o procedimento pré-judicial de produção de provas – merecem destaque, por possibilitarem melhor entendimento a partir da ótica do direito comparado. Todas as três figuras encontram eco, por exemplo, no processo judicial norte-americano.

Portanto, esta semana falarei dos três conceitos tal como adotados no processo estadunidense, com o objetivo de que podem vir a ser adotados os seus paralelos entre nós.

O Tópico de hoje é a O Incidente de Coletivização e o Class Action Lawsuit

Quando a doutrina comparativa clássica confronta o papel do juiz nos sistemas de vocação romana (denominados Civil Law Jurisdictions) com seu contraparte nos ordenamento de tradição anglo-saxã (ou Common Law Jurisdictions) é comum ler que enquanto os julgadores de civil law são, nas palavras de Montesquieu, la bouche de la loi (ou a boca da lei), os magistrados do common law são os depositários do direito.

Essa diferenciação se justificava pois, em sistemas como o nosso. Cada magistrado, do mais recente empossado na carreira ao presidente da Corte mais alta do país, tinha a mesma função de interpretar diretamente o direito positivo. Noutras palavras, para cada caso concreto, cada julgador fazia interlocução direta com a lei e interpretava seu sentido como melhor entendesse. Os julgamentos de outros juízes ou tribunais poderiam até influenciar na decisão mas, a rigor, nada impedia que o juiz substituto de Santa Cruz de Minas pudesse muito bem dizer que a interpretação que o Supremo deu à Constituição Federal estava equivocada. Nesse cenário, todo juiz era, de fato, apenas a boca da lei; cada magistrado poderia dizer o que achava que a lei dizia e os pronunciamentos jurisdicionais anteriores não vinculavam de qualquer modo os posteriores. No sistema clássico de civil law a lei positivada é o direito.

No common law a situação é bem diferente. Para julgar um caso concreto, um magistrado deve olhar para a lei tal como interpretada pelos tribunais. A interlocução do julgador, neste caso, não é diretamente com a lei, mas sim com os precedentes que já aplicaram a lei a fatos idênticos ou similares (exceto, por óbvio, naqueles casos chamados cases of first impression, em que o julgador tem a obrigação de interpretar a norma pela primeira vez e lavrar o primeiro precedente a respeito do assunto). Assim, o conceito de direito não é “a lei positiva”, mas sim “a lei interpretada pelos julgados precedentes”. Nesta hipótese, o magistrado não é apenas a “boca da lei” que se limita a falar qual é o direito, pois se os julgados que profere são capazes de modificar o próprio conteúdo do direito é só porque o direito está depositado na função jurisdicional.

Essa diferença histórica tem se erodido nos últimos anos (Já escrevi aqui no bLex sobre essa evolução do nosso direito pretoriano) e uma análise fria do corrente estado do nosso processo civil leva à inexorável conclusão de que o direito brasileiro está se tornando um direito precedencialista.

Os precedentes do STF e do STJ hoje têm, sim, o condão de impactar e amoldar o nosso conceito de direito. As súmulas vinculantes são uma clara demonstração da possibilidade de se dar força normativa aos entendimentos jurisprudenciais. O mesmo ocorre, ainda que de maneira mais sutil, com a lei de recursos repetitivos. Até mesmo o juiz de primeiro grau pode se valer de seus próprios precedentes para julgar improcedentes ações, mesmo sem mandar citar a parte contrária.

Essa tendência de valorização aos precedentes está ligada à racionalização da prestação jurisdicional. Afinal de contas, num sistema para o qual não importam os precedentes, cada juiz profere a decisão que bem entende e quem sofre é o jurisdicionado, pois a possibilidade de decisões díspares quanto a casos idênticos é altíssima, especialmente se considerarmos que existem cerca de 5.000 juízes, com o potencial risco – como eloqüentemente alertado por Racionais MC – de para “cada cabeça, uma sentença”.

Uma vez tomada a decisão de dar importância jurídica aos precedentes e à uniformidade de aplicação do direito pelo Poder Judiciário – como parece ter silenciosamente ocorrido entre nós – o próximo passo lógico passa a ser admitir a reunião de feitos idênticos para processamento nas instâncias ordinárias.

É a isso que se presta a coletivização do processo. Não sabemos ainda qual o contorno que a Comissão de Juristas pretende dar a esse incidente, mas temos o claro exemplo da prática norte-americana de Class Action. Devo lembrar que todos os aspectos do direito americano citados neste post são generalizações, pois cada um dos 50 estados unidos tem seu próprio conjunto de regras processuais (isso sem falar nas regras de procedimento aplicáveis em nível federal). Mas, a grosso modo, o processo de lá funciona do seguinte modo: propõe-se uma ação com um indivíduo (ou um pequeno grupo de indivíduos) que tem uma prototípica causa de pedir, representativa de um problema de fato e de direito que ocorre uniformemente. Noutras palavras, várias outras pessoas que ainda não são partes do litígio se situam num estado fático-jurídico similar aos autores (ou, em casos tão raros que nem serão comentados aqui, dos réus). A parte então pede que o juiz certifique a existência de uma classe, que o magistrado só pode fazer se perceber que os seguintes requisitos se encontram reunidos.

(a) a classe deve ser grande o suficiente que tornaria impraticável a promoção de ações individuais;

(b) a causa de pedir, tanto no aspecto jurídico quanto no fático, deve ser em comum a todos os indivíduos da classe;

(c) a ação do autor original deve ser típica dos problemas dos demais indivíduos da classe;

(d) o autor original (ou “parte representativa”) deve ter os meios para proteger os interesses das classe (o juiz pode determinar, por exemplo, que a classe seja representada por um escritório de advocacia com mais meios, capacidade e recursos do que o profissional que atua em nome da parte representativa); e

(e) a resolução do conflito se resolverá de modo mais eficiente mediante a ação de classe, ao revés de ações individuais.

Certificada a existência da classe, seus membros são identificados e tentativas razoáveis serão feitas para notificá-los da existência desta ação. (Essa notificação pode se dar por correio, por rádio, jornal, e-mails etc.). Pessoas que não tenham interesse de participar da classe devem informar aos advogados da classe ou ao juízo. Assim fazendo, preservam o direito de promover a ação por conta própria. Quem não comunicar tempestivamente seu interesse de ser removido é considerado como membro da classe e seus interesses serão representados pelos advogados da classe.

A class action é uma figura muito interessante, pois possibilita litígios que seriam outrora inviáveis. Digamos que o banco cobre de cada um de seus clientes uma tarifa indevida de R$ 0,80. Com raríssimas exceções, ninguém vai à justiça reclamar por menos de um real. Agora, se o banco tem um milhão de clientes numa classe idêntica, promove-se uma class action para receber o dinheiro indevidamente descontado em dobro. Se a ação for julgada procedente, o banco vai ser obrigado a devolver em dobro os oitocentos mil reais que tomou indevidamente de seus clientes. Cada membro da classe deve receber cerca de R$ 1,28 sem ter feito nada a não ser assistir a justiça ser feita em seu nome.

Por que R$ 1,28, você pergunta, já que o dobro de R$ 0,80 é R$ 1,60? É que os diligentes advogados que representaram a classe têm direito a 20%, que representa apenas R$ 0,32 de cada membro da classe (ou R$ 320.000,00 reais no total).

Exceto o réu derrotado, todos saem felizes. Os advogados da classe, os membros da classe, e o judiciário.

É claro que o incidente de coletivização precisa vir construído com as necessárias salvaguardas para evitar abusos, mas são instrumentos de imensa valia para os réus também. Quando certificada a classe, os réus não precisam administrar milhares de ações separadas, o que diminui os custos transacionais.

Doutro giro, se o réu for vencedor numa class action se vê livre de um problema, exceto para aquela minúscula parcela de pessoas que optou por se excluir da classe. Mesmo que seja parcialmente derrotado, tem a benção de uma só decisão de aplicação uniforme a todos os membros da classe ao invés de perder 400 ações, cada uma com uma forma diferente de condenação (o que aumenta os custos de administração do cumprimento das múltiplas decisões.)

Além disso, as class actions são importantes por impossibilitarem aquela conhecida miopia de que sofrem alguns magistrados quando a autora é uma doce velhinha nonagenária que não tem absolutamente nenhum direito. Nestes casos, alguns juízes fingem desconhecer o impacto que têm as decisões e tendem a praticar a tal justiça social judicial que tanto criticamos. Se o julgador tem obrigação de tomar uma decisão uniforme para uma classe gigante, tende a medir mais os seus atos e pesar as consequências gerais do seu comando para todas as partes envolvidas.

Portanto, é um instrumento que favorece os autores quando estes têm razão, favorecem os réus quando estes estão corretos, ajudam na eficiência do judiciário transformando centenas ou milhares de processos num só.  A coletivização é um instrumento que – se bem regulado, para evitar abusos – pode ser de extrema valia para a sociedade. Pessoalmente, estou ansioso para ver a próxima versão mais detalhada do texto do Anteprojeto neste ponto e mais, não vejo a hora de estar litigando num feito coletivizado.


10 comments to Entendendo o Anteprojeto do CPC: Incidente de Coletivização e Class Action Lawsuits

  • [...] This post was mentioned on Twitter by Luza Fiorani, Amílcar, Bruno Dantas, Ilanna Praseres, bLex Blog Jurídico and others. bLex Blog Jurídico said: RT @DantasBruno Bom texto. Recomendo! Entendendo o #NovoCPC : Incidente de Coletivização e Class Action Lawsuits http://bit.ly/7KXvXH [...]

  • Realmente interessantíssimo e muito didática a explicação…, gostei :-) , mas fiquei surpreso mesmo pela citação aos Racionais MCs…(grupo que curto muito, exceto é óbvio nas músicas que tem letras de “apologia”); estou ansioso para ver o texto sobre o Amicus Curiae (que já está sendo utilizado na prática em alguns processos envolvendo Ações Afirmativas).

  • Eddington Rocha

    Que se releve a minha sinceridade de estudante de Direito (não mais crente em um sistema judicial romântico), estes Incidentes de Coletivização não seriam muito mais suscetíveis à lentidão em sua tramitação (requerimentos, recursos e “manobras” processuais)?

  • [...] ao nosso sistema de civil law. Por inúmeros motivos já discutidos em posts anteriores (aqui e aqui) o direito brasileiro está dando força aos precedentes e permitido que os mesmos passem a ter um [...]

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Caro Juarez, não é pq sou advogado e escrevo sobre o Direito que sou obrigado a ouvir apenas Bach e Mozart. Posso perfeitamente gostar também de Racionais, MV Bill e Sabotage tanto quanto gosto de Snoop Dog, Lil Wayne, Shinedown, Sick Puppies, Metallica, Placebo, Creed, Papa Roach, Black Eyed Peas, System of a Down, Matisyahu, Linkin Park, Flipsyde, Mattafix, Gnarls Barkley, Damien Marley, Lunar, enfim, de música em todas as suas expressões. Além disso que foi que texto jurídicos precisam ser densos, secos e sisudos só pq lidam com temas sérios? A despeito da austeridade tradicional de nossa doutrina, acredito que um quê de leveza ou um minúsculo toque de humor só tem a contribuir com a experiêcia do leitor. Aliás, essa prática – de explicar um assunto sério e técnico com uma pitada de irreverência – é mais comum na doutrina comparada do que se imagina. De qualquer modo, obrigado pelo comentário.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Eddington. Por mais que se queira atrasar, por manobras processuais, um processo coletivizado, pense no que seria mais demorado: julgar um – apenas um – processo mais complexo (o coletivizado) ou julgar 3.000 processos individuais? Só o tempo economizado com atos cartorários nos 3.000 processos (autuar, numerar, intimar, publicar despachos, etc…) já seria um grande ganho, fora o fato de economizar o juiz de ter que despachar 2.999 processo ( e portanto, deixar de realizar 2.999 audiências preliminares, e além de 2.999 audiências de instrução, 2.999 sentenças, 2.999 recursos….).
    Por fim, lembre-se que para grande parte da classe para a qual há o incidente, não haveria justiça se não fosse por conta da class action . Para esses, se não fosse pela coletivização, a espera seria infinta e – portanto – seja qual for o tempo de tramite do processso coletivizado, sairiam ganhando.

  • Eddington Rocha

    As práticas judiciárias puramente “mecânicas” seriam indiscutivelmente diminuídas, o que já tornam esses Incidentes de muita valia mesmo.

    Na minha pouca experiência eu tenho percebido um fato curioso, que não sei se é peculiar ao Direito ou ao Direito Brasileiro. Tanto os clientes (autores), quanto seus advogados, fazem QUESTÃO de individualizar ao máximo a exposição dos fatos relacionados à lide, como se o fato danoso só tivesse ocorrido naquela específica oportunidade, para dar a impressão de que o caso é ÚNICO e que merece grande atenção por parte do julgador.

    Porém, quando fundamentam o pedido, apresentam tipificações legais conhecidas há decadas e várias jurisprudências no mesmo sentido, ou ressaltam mais ainda os fatos, para dar a impressão de que a demanda não é igual às milhares já ajuizadas, principalmente quando os precedentes são desfavoráveis.

    Eu lembro de uma vez, quando tentando dar uma pequena explicação de relação de consumo para um tio meu, em que ele teimava em dizer que o caso dele era diferente, quando na verdade se tratava de mais um dos inúmeros de litígios causados por razão de defeito no produto adquirido. E o pior. As demais pessoas da mesa concordaram com ele e não que se tratava de uma mera hipótese devidamente prevista na LEI.

    Espero que esta visão judicial se altere com o tempo, pois senão serão muitas as pessoas que preferirão resguardar o seu direito de ação para solucionar o litígio.

  • Ana Carolina Moreira Pino

    Dr. Parabéns pelo texto! Tema fértil e polêmico!! Gosto disso!!
    Minhas preocupações são como seria administrada esses incidentes no Brasil? Qual a influência política do Réu de uma ação dessas? Quais os interesses prevaleceriam em um país como o nosso??? O que pensa disso?
    um abraço a todos!

  • Tatiana Lívia Silva Marques

    Dr. Daniel,
    Sou estudante do 7º Período de Direito e estou neste momento efetuando uma pesquisa para faculdade sobre o Incidente de Coletivização, inclusive tentando fazer um breve esquema de como ele acontece em outros países e quais os seus efeitos, e seu artigo tão fértil e ao mesmo tempo tão simples foi de grande valia para mim.
    Venho pesquisando sobre o tema para um maior conhecimento e por acreditar ser útil ao nosso lento Poder Judiciário e principalmente, após ler seu artigo, consegui deixar minha percepção sobre o tema ainda mais clara.
    Muito obrigada pela colaboração e por engrandecer meus conhecimentos e tenho certeza que agradeço por várias pessoas que por curiosidade pelo tema ou por necessidade tenham lido seu excelente artigo.

    Um abraço!!!

  • Felippe Proba

    Dr. Daniel,

    Inicialmente, cumpre-me parabenizá-lo pelo brilhantismo do texto em voga. Fusão perfeita de um conteúdo notório com uma escrita clara e objetiva.
    No entanto, minha intenção ao tecer este comentário ultrapassa a merecida exaltação que o texto enseja, pois o assunto em debate é de meu extremo interesse. Vou explicar…
    Estou cursando o 9º período do curso de Direito e pretendo desenvolver minha monografia exatamente sobre o incidente de coletivação que está prestes a ser integrado ao nosso ordenamento jurídico. Tenho encontrado certa dificuldade para achar livros que tratam deste assunto de um modo mais abrangente…será que o senhor pode me indicar alguma leitura?

    Desde já, agradeço pela oportunidade e aguardo com ansiedade a resposta por email.

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