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A prova ilícita por derivação e suas exceções.

Autor: Marcio Luiz Coelho de Freitas

O autor é Juiz Federal na Seção Judiciária do Amazonas e titular do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas. Texto reproduzido com permissão do autor.

Em sede de jurisdição penal, a reconstrução dos fatos imputados ao réu é provavelmente a atividade mais relevante desempenhada no processo. Como afirma Franco Cordero, “os processos são máquinas retrospectivas que se dirigem a estabelecer se algo ocorreu e quem o realizou, cabendo às partes formularem hipóteses, e ao juiz acolher a mais provável, com estrita observância de determinadas normas, trabalhando com base em um conhecimento empírico”. Não obstante atualmente haver praticamente um consenso no âmbito não só do Direito, mas também da Filosofia e da Hermenêutica acerca da idéia de que a verdade é inalcançável (posto que somente conseguimos obter versões da verdade) e que por meio do processo judicial não se pode pretender chegar à chamada “verdade real”, mas tão somente à verdade formal, construída a partir do que foi colhido na instrução, o fato é que a busca da verdade sobre os fatos discutidos nos autos sempre foi tida como um imperativo de justiça. Com efeito, como afirma Leonardo Greco,

Em todos os tempos, a idéia de Justiça como objeto do Direito sempre esteve axiologicamente ancorada no pressuposto da verdade, ou seja, na incidência das normas jurídicas sobre a realidade da vida tal como ela é. Os indivíduos somente se sentem eticamente motivados a conviver sob o império da lei, quando sabem que a justiça vai dar a cada um o que é seu, em conformidade com a verdade.

É claro que na História da Humanidade, em muitas épocas o conceito de verdade, como adequatio intellectus ad rem, foi questionado pelos filósofos, ou foi considerado inacessível ou foi sobrepujado pelo Estado autoritário ou pelo positivismo, mas sempre, na teoria das provas, a verdade ou a certeza dos fatos ressurge como uma função importante. Jeremias Bentham, escrevendo no início do século XIX, após o impacto do racionalismo cartesiano e do idealismo kantiano, ironiza os filósofos, que duvidam da

própria realidade do mundo físico, dizendo que os que os seguirem piamente correrão o risco de não se afastarem de um carro que avança ou de um rio à sua frente, e, assim, “destrozaréis o ahogaréis um gran filósofo.

Tem-se, pois, que mesmo a despeito de se reconhecer as dificuldades imanentes à busca pela verdade no processo, o Direito não pode abdicar desta finalidade, que deve sempre figurar como horizonte de sentido a guiar toda a atuação dos operadores do direito. Com efeito, render-se ao relativismo exagerado, próprio das teorias pós-modernas, seria reconhecer que o Direito não pode validamente ter uma pretensão de correção, tal como defendida por Alexy e Dworkin, o que acabaria por deitar por terra todos os avanços do movimento neoconstitucionalista.

A atividade probatória exercida no âmbito de um processo penal que se pretenda democrático, pois, deve conciliar a pretensão de realização da justiça, fundada na maior aproximação possível da verdade histórica, com o respeito aos direitos fundamentais do investigado/acusado. Como ensina Muñoz Conde,

(…) o Processo Penal de um Estado de Direito deve não somente manter um equilíbrio entre a busca da verdade e a dignidade dos acusados, mas deve entender a verdade mesma não como como uma verdade absoluta, mas sim como o dever de fundamentar uma condenação somente sobre aquilo que indubitável e intersubjetivamente pode ser dado como provado. O resto é puro facismo e volta aos tempos da inquisição, dos quais se supõe já havermos felizmente saído.

É de se notar, entretanto, que a afirmação de que a busca da verdade deve ser um guia a orientar a atuação dos operadores do Direito não implica que se possa admitir tudo e qualquer coisa em nome da busca da verdade. Com efeito, em nosso regime jurídico-constitucional toda atividade estatal deve necessariamente ser realizada atendendo aos princípios e regras constitucionais que conferem direitos fundamentais aos indivíduos e que, por óbvio, não podem ser desconsiderados em nome da pretensa busca pela “verdade real”. Não se pode desconhecer o fato de que, na precisa lição de Ferrajoli,

É evidente que esta pretendida ‘verdade substancial’, ao ser perseguida fora das regras e controles, e sobretudo, de uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação, se degenera em um juízo de valor, amplamente arbitrário de fato, assim como o a cognição ética sobre aquilo em que se baseia o substantivismo penal resulta inevitavelmente solidário com uma concepção autoritária e irracionalista do Processo penal.

A Constituição Federal traz limitações expressas à atividade persecutória estatal quando elege à condição de direitos fundamentais a intimidade (art. 5º, X), a inviolabilidade do domicílio (inciso XI), a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das telecomunicações (inciso XII) e inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (inciso LVI). Da mesma forma, o pacto de São José da Costa Rica, que integra o ordenamento jurídico interno, prevê em seu art. 11º, que “1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade; 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação e 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.”. Tais marcos, portanto, representam um limite à busca dos órgãos estatais por elementos que possibilitem a persecução penal, configurando verdadeiros limites éticos à atividade probatória. Como afirma Maria Thereza Assis Moura,

No que concerne aos limites éticos, repousam eles na legitimidade moral da formação da prova, que respeite a privacidade ou a intimidade, enfim, a plena liberdade do homem e, sua vida íntima, daí porque o processo deve se desenvolver dentro de uma escrupulosa regra moral, que orienta a atividade do juiz e das partes em prol do valor essencial da dignidade da pessoa humana.

Assim, se o que se busca é a concretização de um Processo Penal democrático, compatível com os ditames do Estado de Direito, em que toda atividade estatal seja desenvolvida dentro de um conteúdo ético que lhe conceda legitimidade, torna-se imperioso definir quais os limites da ação probatória dos órgãos da persecução penal, definindo-se o que é a prova vedada e quais são os efeitos da declaração da ilicitude sobre o processo, especialmente no que concerne à eventual “contaminação” das provas decorrentes daquela tida como vedada.

As provas vedadas ou ilegais, ensina Maria Thereza Assis Moura, configuram o gênero do qual as provas ilegítimas e ilícitas são espécies. As provas ilegítimas são aquelas que a produção implica na violação de uma regra de direito processual (ex. juntada de documento fora de prazo, inquirição de testemunha proibida de depor, etc). As provas ilícitas, por seu turno, são aquelas produzidas com violação dos direitos fundamentais do indivíduo, cuja produção implique na agressão a um direito material ou constitucional, sendo a ilicitude sempre relacionada a um dado que está fora do processo (ex. gravação telefônica clandestina). A distinção é importante porque as provas ilícitas não podem em momento algum ser convalidadas ou repetidas, ao passo que as ilegítimas podem, em tese, ser repetidas, uma vez afastada a violação processual que ensejou sua ilegitimidade.

Neste ponto, releva notar que a lei Lei 11.690, buscando dar concreção à norma constitucional que determina a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, alterou o art. 157 do CPP, que passou a ter a seguinte redação:

Art. 157.  São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

§ 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

§ 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.  (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

Verifica-se, assim, que a distinção entre provas ilícitas e ilegítimas não foi acolhida pelo legislador, que chamou de ilícitas ambas as modalidades. Em todo caso, tenho ainda ser importante a distinção, útil para balizar uma eventual decisão acerca da admissibilidade da repetição da prova. Em todo caso, verifica-se que houve uma aproximação em nosso direito positivo da regra de exclusão de provas adotada no direito americano, ao expressamente dispor o § 1º do art. 157 que também as provas derivadas das ilícitas são inadmissíveis, positivando assim a chamada teoria da árvore dos frutos envenenada.

Denomina-se teoria dos frutos da árvore envenenada a construção jurisprudencial americana que determina a inadmissibilidade da prova ilícita por derivação. Tal teoria fundamenta-se no fato de que, como afirma Eugênio Pacelli,

Se os agentes produtores de prova ilícita pudessem dela se valer para a obtenção de novas provas, a cuja existência somente se teria chegado a partir daquela (ilícita), a ilicitude da conduta seria facilmente contornável. Bastaria a observância da forma prevista em lei, na segunda operação, isto é, na busca das provas obtidas por meio das informações extraídas por via da ilicitude, para que se legalizasse a ilicitude da primeira (operação). Assim, a teoria da ilicitude por derivação é uma imposição da aplicação do princípio da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente.”

De qualquer sorte, fato é que atualmente nosso regime jurídico-processual expressamente dispõe que como conseqüência da declaração da ilicitude de uma prova, forçosamente as provas dela derivadas deverão ser excluídas do processo (e, na forma do disposto no § 3º do art. 157, inutilizada por decisão judicial). Faz-se necessário, assim, buscar-se elementos que permitam uma melhor compreensão da amplitude dessa regra, e a forma com que ela vem sendo aplicada pela jurisprudência pátria.

Neste ponto, é de se ter claro que no direito americano, onde se originou a teoria dos frutos da árvore envenenada, a exclusão da provas ilícitas somente ocorre quando presentes seus três elementos fundamentais: a) uma ação ilegal de um policial ou de alguém atuando como se fora policial; b) uma prova obtida por tal pessoa e, finalmente e c) o nexo causal entre a ação ilegal e a obtenção da prova. Assim, ainda que efetivamente reste configurado um ato ilegal, se não ficar demonstrado que há um nexo causal entre tal ato e a obtenção da prova, não será o caso de sua exclusão. Com efeito, a primeira decisão em que a Suprema Corte americana adotou a tese (embora sem chamá-la por este nome) se deu no caso Silverthorne Lumber Co v. United States, em 1920. Posteriormente, quando do julgamento do caso Nardone v. United States, de 1939, a Corte expressamente se referiu à regra de exclusão das provas ilícitas usando a terminologia “fruits of the poisonous tree“, já cuidando expressamente da exceção relativa à fonte independente. Cito trecho do julgado histórico em que após fazer referência à decisão do caso Silverthorn Lumber Co. v US, a Corte afirma que:

Na prática, a generalização dessa diretriz pode camuflar complexidades concretas. Argumentos sofisticados podem revelar um nexo de causalidade entre as provas obtidas por meio de interceptação telefônica ilegal e as provas obtidas licitamente pelos órgãos estatais. Por uma questão de bom senso, no entanto, a ligação pode se tornar tão tênue de forma a dissipar a mancha que macula a prova. Uma forma sensata de lidar com essa situação — fair to the intendment of 605, but fair also to the purposes of the criminal law – deveria estar ao alcance de juízes experientes. O ônus da prova recai num primeiro momento sobre o acusado, que deve demonstrar que a gravação clandestina foi feita de modo ilegal. Uma vez que isto esteja estabelecido – como ocorreu satisfatoriamente aqui – o juiz deve dar oportunidade, embora restrita, do acusado demonstrar que uma porção substancial das acusações contra ele são frutos da árvore venenosa. Isto deixa uma ampla oportunidade para o aparato estatal convencer o juiz que a sua prova teve uma origem independente.” (Tradução livre)

Vale notar, ainda, que a doutrina dos frutos da arvore envenenada comporta quatro cláusulas principais de exclusão: a teoria da fonte independente (Independent Source Doctrine, criada pela Suprema Corte no caso Segura and Colon v U.S, de 1984), a teoria da descoberta inevitável (Inevitable Discovery Doctrine – Nix vs. Williams, em 1984), a teoria da atenuação do nexo causal (Attenuation douctrine – Wong Sun vs. US. , em 1963) e a teoria da boa fé (casos U.S. vs. Leon e Mass. vs. Sheppard). Tais teorias, construídas sobre a análise de casos concretos, configuram hipóteses em que mesmo a despeito de haver sido reconhecida a ilicitude da prova antecedente, não foi determinada a exclusão das provas dela decorrentes.

A teoria da fonte independente permite a admissão de uma prova “contaminada” pela ilicitude quando houver elementos que demonstrem que esta prova também seria descoberta ou obtida a partir de uma outra fonte, que nenhuma relação guarde com aquela em que se verificou a violação aos direitos do investigados. Como afirma Jeffrey Jenkins, esta teoria “visa colocar a polícia na mesma situação em que estaria se a prova não houvesse sido obtida impropriamente. Isso equilibra o interesse da sociedade em impedir a polícia de agir ilegalmente e o interesse da sociedade em garantir a persecução penal”(tradução livre).

Por seu turno, pela teoria da descoberta inevitável, admite-se a utilização de prova, ainda que presente eventual relação de dependência entre esta uma prova obtida (ou produzida) ilicitamente, quando se verifica que a autoridade policial, mediante a utilização dos métodos de investigação de que ordinariamente lança mão, poderia chegar à mesma evidência. É a hipótese prevista no § 2º do art. 157 (e ali chamada de descoberta inevitável). De se notar que os fundamentos de ambas as teorias são diferentes, mas guardam uma relação de proximidade muito grande, tanto que a Suprema Corte Americana já se manifestou no sentido de que a teoria da descoberta inevitável pode ser vista como uma variação da teoria das fontes independentes (Murray vs US – 1988). De qualquer forma, mesmo a despeito da pequena confusão conceitual feita pelo legislador, ambas as teorias são perfeitamente aplicáveis no nosso ordenamento, a descoberta inevitável por estar expressamente prevista no § 2º do art. 157 e a fonte independente por dizer respeito à própria existência de nexo causal, requisito para a configuração da ilicitude por derivação expressamente previsto no § 1º do art. 157.

Ainda nessa linha de apreciação dos elementos constitutivos da ilicitude por derivação, tem-se a exceção consubstanciada na teoria da atenuação do nexo causal. Por tal teoria permite-se a utilização da prova derivada se sua obtenção tiver ocorrido de forma muito remota (em termos de nexo causal) com a ilicitude originária. Verifica-se, assim, uma “atenuação” da cadeia causal dos acontecimentos que justifica a permanência da prova. Para a aplicação dessa exceção, devem ser verificados três fatores: a) o tempo decorrido entre a ilegalidade e a obtenção da prova; b) a presença de circunstâncias que dividam a cadeia causal e c) a conduta ilegal flagrante proposital.

Por fim, no direito americano admite-se como exceção à regra de exclusão das provas ilícitas a teoria da boa-fé, que guarda íntima ligação com o fato de que toda a construção jurisprudencial das regras de exclusão das provas obtidas ilicitamente teve como fundamento declarado a atuação pedagógica do Judiciário, que assim agindo desestimularia a polícia de novamente cometer qualquer ilicitude nas investigações. Assim, uma vez que as regras de exclusão destinam-se precipuamente a evitar que as autoridades encarregadas da investigação criminal atuem de forma ilegal, nos casos em que ficar demonstrado, além de qualquer dúvida razoável, que a atuação da autoridade se deu de boa fé, não haverá razão para a exclusão da prova.

Releva notar, entretanto, que a prática judicial brasileira, especialmente do STF, tem se aproximado muito mais da alemã, com a teoria da “Beweisverbote” da Corte Constitucioal alemã do que da doutrina da exclusão norte-americana, o que faz com que a teoria da boa-fé deva ser vista com muitas reservas quando se tem em conta o regime jurídico-probatório brasileiro. É que enquanto nos EUA a teoria tem como fundamento a garantia procedimental do devido processo legal formal e mira a conformação da atividade policial (o que, como afirmado, explica a doutrina da boa fé, pela qual se afasta a aplicação da regra de exclusão nos casos em que a polícia agiu acreditando legitimamente ter autorização judicial para atuar na busca das provas), na Alemanha o fundamento é a proteção os direitos fundamentais em seu aspecto material, de sorte que se construiu uma extensa prática de avaliação concreta de proporcionalidade e ponderação.

Ora, num sistema em que a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos foi alçada à condição de garantia fundamental, assim como a honra e a intimidade, é muito pouco provável que na análise de um caso concreto fosse possível, mesmo lançando-se mão da regra da proporcionalidade, afastar-se a ilicitude da prova em razão da boa-fé do agente policial. É que a Constituição criou as regras restritivas da atividade investigatória como forma de proteção aos direitos fundamentais do cidadão, de modo que o efeito pedagógico que tais decisões têm, em que pese serem uma consequência natural e bastante positiva, não é estruturante do sistema. Imagine-se, a título de exemplo, uma hipótese em que o juízo competente, ao deferir uma interceptação telefônica, comete um erro material na hora de expedir os ofícios às operadoras de telefonia e, ao invés de determinar a quebra no número X determina a quebra do número Y, e que a autoridade policial, ao fazer a análise das escutas, constata a ocorrência de um crime. Nessa hipótese, em que pese ter a polícia agido absolutamente de boa-fé, essa prova não poderá ser validamente utilizada, porque foi colhida por meio ilícito, não podendo ser tal ilicitude afastada unicamente ante a boa-fé da autoridade policial.

De se notar, ainda, que não se está aqui defendendo a impossibilidade dos órgãos encarregados pela investigação penal tomarem medidas que acabem por, de certa forma, vulnerar a intimidade dos investigados, até porque a proteção á intimidade, como de resto todo e qualquer direito fundamental, não tem caráter absoluto, sendo possível resolver-se eventual colisão entre princípios mediante a aplicação da regra da proporcionalidade. Que se está afirmando aqui, ao refutar a aplicabilidade da teoria da boa-fé, é que, em nosso sistema, não há como validamente sustentar-se que a boa-fé da autoridade policial é suficiente para afastar a ilicitude da obtenção de uma prova.

Neste aspecto, vale notar que o STF por várias vezes já se manifestou no sentido de que admite a aplicação da ponderação na verificação da exclusão das provas. Recentemente a Corte Suprema, já sob a vigência do instituto da repercussão geral, reafirmou não considerar ilícita a gravação ambiental feita por um dos interlocutores, relativizando, assim, a proteção à intimidade deste num exercício de ponderação. Neste sentido foi decidido no RG na QO no RE 583.937/RJ, rel. Min. Cezar Peluso, 19.11.2009, DJE 17.12.2009

EMENTA: AÇÃO PENAL. Prova. Gravação ambiental. Realização por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário provido. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC.

É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro.

Tem-se, pois, que no sistema jurídico-penal brasileiro a ponderação e a proporcionalidade são vetores constantemente considerados quando da apreciação da extensão das ilicitudes da prova. De qualquer sorte, mesmo quando aplica a teoria das exclusões do direito americano, o STF sempre ressalva a possibilidade de temperamentos, especialmente no que concerne às provas derivadas. Neste sentido, vale transcrever decisão proferida no HC 93050, Relatada pelo Min. CELSO DE MELLO:

(…) ILICITUDE DA PROVA – INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) – INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA RESULTANTE DE TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS. – A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do “due process of law”, que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. A “Exclusionary Rule” consagrada pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América como limitação ao poder do Estado de produzir prova em sede processual penal. – A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”. Doutrina. Precedentes. – A circunstância de a administração estatal achar-se investida de poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização em sede tributária não a exonera do dever de observar, para efeito do legítimo desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de os órgãos governamentais incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes em particular. – Os procedimentos dos agentes da administração tributária que contrariem os postulados consagrados pela Constituição da República revelam-se inaceitáveis e não podem ser corroborados pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de inadmissível subversão dos postulados constitucionais que definem, de modo estrito, os limites – inultrapassáveis – que restringem os poderes do Estado em suas relações com os contribuintes e com terceiros. A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA (“FRUITS OF THE POISONOUS TREE”): A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO. – Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subseqüente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária. – A exclusão da prova originariamente ilícita – ou daquela afetada pelo vício da ilicitude por derivação – representa um dos meios mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do “due process of law” e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual penal. Doutrina. Precedentes. – A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos “frutos da árvore envenenada”) repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal. Hipótese em que os novos dados probatórios somente foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão de anterior transgressão praticada, originariamente, pelos agentes estatais, que desrespeitaram a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. – Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em decorrência da ilicitude por derivação, os elementos probatórios a que os órgãos estatais somente tiveram acesso em razão da prova originariamente ilícita, obtida como resultado da transgressão, por agentes públicos, de direitos e garantias constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação de ordem jurídica ao poder do Estado em face dos cidadãos. - Se, no entanto, o órgão da persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova – que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal -, tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária. – A QUESTÃO DA FONTE AUTÔNOMA DE PROVA (“AN INDEPENDENT SOURCE”) E A SUA DESVINCULAÇÃO CAUSAL DA PROVA ILICITAMENTE OBTIDA – DOUTRINA – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.) – JURISPRUDÊNCIA COMPARADA (A EXPERIÊNCIA DA SUPREMA CORTE AMERICANA): CASOS “SILVERTHORNE LUMBER CO. V. UNITED STATES (1920); SEGURA V. UNITED STATES (1984); NIX V. WILLIAMS (1984); MURRAY V. UNITED STATES (1988)”, v.g.. – grifamos.

Assim, quando se tem em mente que as regras limitadoras da atividade investigatória do Estado têm por finalidade conferir a máxima eficácia aos direitos constitucionalmente assegurados aos cidadãos, compreende-se que o cumprimento de tais normas está intrinsecamente ligado à noção de eficiência e eficácia da jurisdição penal, que pressupõe não só que o processo transcorra num prazo razoável, mas também (e principalmente) que todos os atos processuais praticados sejam válidos, praticados dentro de um ambiente de amplo respeito às regras do jogo, à paridade de armas e à dignidade da pessoa do investigado/acusado. A violação dessas regras, além de configurar desperdício de tempo e de recursos públicos (humanos e materiais) que, por definição, são extremamente escassos, inevitavelmente levará ou à declaração da nulidade do feito ou à perpetuação de uma ilegalidade praticada “em nome da lei”, situações com as quais não se pode concordar.

Com efeito, o processo penal constitui mais do que mera formalidade necessária ao exercício do contraditório e da ampla defesa, mais do que mera condição para o exercício legítimo do poder de punir estatal. Na verdade, o processo penal constitui em si mesmo verdadeira garantia fundamental para o indivíduo, na medida em que é somente através dele que surge para Estado o poder de punir. A dizer, não há, em abstrato, algo que se possa denominar poder punitivo estatal que seja anterior ao Processo Penal, de vez que sem este não há sequer como pensar-se em aplicação da lei penal. O Processo Penal, assim, é em si mesmo expressão do direito fundamental à liberdade e à dignidade da pessoa humana, e não mero meio pelo qual esses direitos são exercidos, de sorte que se torna ainda mais premente a necessidade que os operadores do Direito,em especial os juízes, responsáveis que são pela direção do Processo, sempre estejam voltados à busca pela maximização dos direitos e garantias fundamentais (que, ressalte-se, não se limitam aos direitos que conferem proteção à pessoa do acusado/investigado).

Aliás, sobre o tema, não se pode descurar do fato de que a efetiva tutela jurisdicional na seara penal é, sem dúvida, também um princípio constitucionalmente assegurado (valendo notar que o art. 6º da Constituição expressamente dispõe ser a segurança um direito social), havendo na constituição vários mandatos de criminalização de condutas (v.g. os incisos XLI, XLII, XLII, XLIV, do art. 5º da CF). Aliás, o fato de ser a ação penal privada subsidiária prevista no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º, LIX) já demonstra a preocupação do constituinte com a proteção do interesse da sociedade na persecução penal, o que demonstra ser necessário que os operadores do Direito estejam sempre atentos para, dentro das regras de um processo democrático e fortemente ancorado na garantia dos direitos constitucionais, renovarem continuamente seu compromisso com a efetividade do processo e com o respeito aos direitos dos acusados, compromisso este que tem nas regras relativas à admissibilidade das provas uma de suas mais importantes expressões.

Obras consultadas

ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Trad. Luís Afonso Heck. 2ª ed. revista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformação constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
Vol I.

GRECO, Leonardo. O conceito de prova. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, Ano IV, nº 4 e ano V, nº 5- 2003-2004, pp. 233-234.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madrid: Editora Trotta, 3ª ed., 1998, p.44.

MARIA THEREZA ROCHA DE ASSIS MOURA. A ilicitude na obtenção da prova e sua aferição. Disponível em <www.ambito-juridico.com.br> Data de acesso: 22.07.2010.

ALAMEDA COUNTY DISTRICT ATTORNEY’S OFFICE. Miranda Exceptions: When Miranda may be disregarded. Point of View, California, Summer. 2005. Disponível em <http://le.alcoda.org/publications/point_of_view/> Data de acesso: 22.07.2010.

West’s Encyclopedia of American Law, edition 2. Copyright 2008 The Gale Group, Inc.

U.S. Supreme Court. Nardone v. United States, 308 U.S. 338 (1939)

MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. Ônus da Prova no Direito Processual Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

DELMANS-MARTY, Michelle (org.). Processos Penais da Europa. Trad. Fauzi Hassan Choukr, com a colaboração de Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 10a ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

VIDAL, Hélvio Simões. Provas ilícitas e a extensão dos seus efeitos (Fernwirkung der Beweisverbote). De jure: revista jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, nº 11, 2008.


3 comments to A prova ilícita por derivação e suas exceções.

  • Rafael Bertazzo

    Excelente artigo do Dr. Márcio. Já fiz audiência com ele na JF.

    Ainda não tinha visto nenhum assunto relacionado ao processo penal e pelo jeito, na primeira vez que vejo já houve início dos debates com chave de ouro.

  • Jeovam Barbosa.

    Dr. Marcio Luiz C. de Freitas, sobre sua matéria é realmente inaceitavél, ser comdenado, por provas forjas por pessoas sem nenhum pricipio, e deixar o acusado sem nehuma saida, pois essas “provas” de uma forma ou de outra deixam muitas dezes uma marca, que leva o julgador a cometer erros e prejudica o amplo direito de defesa do acusado.

    Uma coisa é certa,quando eles querem aceitam as provas para condenar.

    Mais para absolver nem as provas valem.

    O DIREITO ESTA ONDE OS INTERESES ESTÃO. ISSO É BRAZIL.

  • Ulisses Maia de Deus

    Em minha opinião, se a sentença jurisdicional definitiva basear-se-á nas provas obtidas pela realização do devido processo legal, com respeito a todos os direitos e garantias constitucionais, isto é, nas provas lícitas que não ofendam ao direito material, então, a quem tem a função de julgar, recomenda-se o prudente arbítrio, pois a ele compete, também, examinar o cabimento da aplicação da teoria da proporcionalidade para, sem dar fuga à inteligência da norma, temperar o rigor da inadmissibilidade da prova ilícita. Mesmo porque, pelo sistema constitucional vigente não há como se falar em garantia absoluta, extremada e isenta de restrição decorrente do respeito que deve ter outras garantias de igual ou superior relevância.

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