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Seguro Morreu de Velho

Gostaria de aproveitar o gancho deixado pelo colega Fábio Bandeira, a respeito da inversão automática do ônus da prova, em litígios que envolvam relações de consumo. Como muito bem alertado pelo colega, essa inversão vem se dando de maneira automática, em total desarmonia com o tratamento ofertado pelo CDC, que nem mesmo no auge de seu protecionismo vislumbrou regra tão iníqua.

Contudo, de se destacar, que o exemplo ofertado pelo colega não é a única hipótese em que este importante instrumento de salvaguarda dos interesses dos consumidores é aplicado de maneira atabalhoada.

Na prática forense tenho me deparado com a seguinte situação (para a qual sempre alerto meus alunos): a parte autora ou não requer a inversão do ônus da prova ou a requer, mas o magistrado não se manifesta, hipótese em que o fornecedor- via de regra réu – se vê no iminente risco de ser surpreendido – como eu tanto tenho visto – com a inversão realizada na sentença.

Tal prática é mais comum do que se imagina. Talvez seja pelo fato de que, como todos nós sabemos, a rigor o magistrado (ou assessor) apenas se debruça no processo, quando se prepara para sentenciá-lo, muitas vezes analisando o pedido de inversão do ônus da prova pela primeira vez nesta oportunidade. Vale lembrar que como a inversão pode se dar de ofício, sequer é necessário que a exordial faça tal requerimento, o que pode tornar a surpresa do fornecedor ainda maior.

Mais uma vez (tal qual já alertado pelo Fábio) crível que se reconheça a possibilidade, esculpida no inciso VIII, do art. 6º, da Lei 8078/90, de que seja deferida a inversão do ônus da prova, em favor do consumidor, em situações que, a critério do magistrado, sejam verossímeis as alegações ou em que o consumidor seja hipossuficiente, buscando tal medida mitigar a costumeira fragilidade do consumidor em face do fornecedor.

Inegável é que tal inversão não é automática. Ao revés, necessita ser objeto de expressa manifestação judicial, quando estiverem presentes os requisitos de sua concessão.

Assim sendo, neste aspecto há clara aplicabilidade do princípio da razoabilidade, não apenas na determinação ou não da inversão, mas também no momento em que seja determinada tal inversão.

Assim como a própria concessão deve atender a certos requisitos, também exitem regras quanto ao momento em que esta ocorre. Inverter tal ônus na sentença que se mostra teratológico e, sobretudo, inconstitucional, pois ocorre em momento em que não mais cabe ao réu a produção de qualquer prova, surpreendendo o fornecedor com a obrigação de provar o que a rigor não seria ônus seu, e o que é pior, em momento em que tal prova se mostra impossível.

O que se ataca aqui não é a possibilidade legal de inversão do regramento da prova, alterando a distribuição do ônus, mas apenas que esta possa ocorrer em momento quão inoportuno.

Certamente, tal discussão inexistiria se o CDC estipulasse a inversão automática, visto que neste caso o recorrente já entraria no processo sabendo qual é exatamente a regra do jogo, participando da instrução processual com a exata noção de que lhe incumbe provar. Ocorre que não é este o regramento apresentado pelo CDC, sendo certo que a priori, aplica-se a distribuição dos ônus da prova prevista no art. 333 do CPC.

Ora, indiscutível que não há como o réu pressupor se o magistrado entenderá pela necessidade ou não da inversão, fazendo com que até o momento em que esta seja expressamente determinada, permaneça vigendo o art. 333.

Assim sendo, se o réu participa da fase instrutória, sem que tenha sido determina a inversão, sua preocupação irá se restringir a comprovar os fatos desconstitutivos, extintivos ou modificativos do direito do autor, por si trazidos aos autos, mas jamais se preocupará em comprovar a inverdade daquilo que fora alegado e não provado pelo autor, visto que ônus da existência de tal fato seria, a priori, do próprio autor.

Em face do exposto não há como pairar qualquer dúvida quanto à inoportunidade da inversão determinada neste momento processual, visto que se fere frontalmente uma miríade de princípios constitucionais, sobretudo, o do contraditório e da ampla defesa.

Salvo melhor juízo, parece-me que o momento processual adequado para a decisão da inversão do ônus da prova ou não, é aquele imediatamente anterior a fase instrutória, na Audiência Preliminar- no rito ordinário – e antes da Audiência de Instrução nos Juizados Especiais.

Contudo, como o seguro morreu de velho, tomo como prática requer manifestação do juízo, antes da instrução, quando há requerimentode inversão do ônus da prova. Sei que posso estar abrindo os olhos do magistrado para algo que talvez passasse desapercebido, mas temo o risco maior de ter que discutir no Tribunal( ah o nosso Tribunal!!!) tal questão.

1 comment to Seguro Morreu de Velho

  • Fábio Bandeira de Melo

    Dr. Ney Bastos, achei as suas considerações extremamente pertinentes.
    A meu ver, uma sentença que aplica a inversão do ônus da prova, somente no momento de sua prolação, certamente fragiliza o consagrado direito à ampla defesa e ao contraditório, uma vez que a parte vencida (empresa), que até então aguardava as provas em seu desfavor, vê-se repentinamente submetida a uma regra que não poderá mais cumprir, já que decorreu o momento de produção probatória.
    Em outras palavras, imputar ao réu (empresa) o dever de produzir provas somente após decorrido o momento processual adequado para tanto, implica em afastar o direito de produção probatória, bem como desrespeitar os princípios do contraditório, da ampla defesa e, principalmente, do devido processo legal.
    Parabéns pelo Post!!!

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