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Avanço ou Retrocesso?

Conforme noticia informe do Superior Tribunal de Justiça, a Terceira Turma daquela corte (Resp 1087783) entendeu que, em casos de o cliente perder celular em decorrência de caso fortuito ou força maior, devidamente comprovada, a empresa de telefonia deve fornecer gratuitamente outro aparelho pelo restante do período de carência ou, alternativamente, reduzir pela metade o valor da multa a ser paga pela rescisão do contrato.

A discussão teve início com uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, requerendo que a operadora se abstivesse de cobrar qualquer multa, tarifa, taxa ou valor por resolução de contrato de telefonia móvel decorrente de força maior ou caso fortuito, especialmente na hipótese de roubo ou furto do aparelho celular.

A discussão abrangia ainda um pedido de restituição em dobro das quantias pagas pelos consumidores, pela rescisão do contrato, questão que não é o objeto central deste post.

Ao decidir, a ministra levou em conta ser o consumidor parte hipossuficiente na relação comercial, apresentando duas alternativas à operadora: dar em comodato um aparelho ao cliente durante o restante do período de carência, a fim de possibilitar a continuidade na prestação do serviço e, por conseguinte, a manutenção do contrato; ou aceitar a resolução do contrato, mediante redução, pela metade, do valor da multa devida, naquele momento, pela rescisão.

A relatora ressaltou, ainda, que, caso seja fornecido um celular, o cliente não poderá se recusar a dar continuidade ao contrato, sob pena de se sujeitar ao pagamento integral da multa rescisória. “Isso porque, disponibilizado um aparelho para o cliente, cessarão os efeitos do evento [perda do celular] que justifica a redução da multa”, concluiu Nancy Andrighi.

A referida decisão gera sensações antagônicas neste humilde jurista, pois ao mesmo passo que o professor de Direito do Consumidor felicita o julgado, o advogado vislumbra uma série de questões práticas que fazem com que se abra espaço para abusos por parte dos consumidores.

Primeiramente, de se reconhecer que o referido julgado aplica determinação expressa no Código de Defesa do Consumidor(art. 6º, V) que prevê o direito a revisão, em duas hipóteses de cabimento, a uma quando a prestação já surge desproporcional, uma vez que nessa hipótese se estaria violando as determinações do referido código no que tange as cláusulas abusivas; e a duas quando embora haja nascido proporcional, em face de fatos supervenientes, a cláusula se torne excessivamente onerosa.

Importante destacar que a segunda hipótese de cabimento, prevista na norma (em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas), não se confunde com a teoria da imprevisão prevista no Código Civil (cláusula rebus sic standibus), uma vez que dispensa a necessidade de que os fatos supervenientes sejam imprevisíveis. Em suma, em uma relação de consumo, havendo alteração da realidade fática existente no momento da contratação, e essa alteração gerando onerosidade excessiva, surge imediatamente o direito básico do consumidor de revê-la.

Não é outra a lição dos mestres Rizzato Nunes, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, ou mesmo de precedentes do STJ (AGRESP 374351/RS (200101503259),REsp 473140/SP, Resp 2002/0134887-9.

Inegável, portanto, que, do ponto de vista estritamente legal, o julgado é acertado e merece elogios.

A questão que surge é de cunho prático, pois lançada estaria a brecha para que as cláusulas de fidelidade praticamente percam sua função prática.

De antemão, de se destacar que tais cláusulas, incluídas em contratos de prestação de serviço de telefonia móvel, funcionam como contraprestação do fornecimento de determinado produto ou serviço, optado pelo consumidor (que ganha um aparelho, recebe descontos na aquisição de aparelhos, tarifas de ligação mais baixas etc.), sendo, portanto, aceitas pelos tribunais pátrios como lícitas, em face da diferenciação entre cláusulas restritivas e abusivas(que merece um post próprio).

Em função do referido julgado, o consumidor que aceitou a fidelidade em troca de determinado benefício poderia facilmente buscar outra operadora em face de vantagens novas, bastando para tanto alegar que perdeu ou que teve seu aparelho extraviado.

Não se pode olvidar que o STJ teve o cuidado de exigir que o caso fortuito ou força maior sejam devidamente comprovados, o que, contudo, não dificulta em nada a tarefa do consumidor que veja aqui uma brecha de abuso.

Primeiro, porque o ônus da prova em relações de consumo é, quase sempre, invertido, o que iria impor ao fornecedor a impossível tarefa de comprovar que o consumidor não perdeu o aparelho por caso fortuito ou força maior.

Segundo, porque mesmo que não houvesse tal inversão, ao consumidor bastaria a elaboração de um Boletim de Ocorrência, narrando que seu aparelho foi perdido, furtado ou roubado, para que a maioria dos juízes entendessem que seu ônus probatório foi cumprido.

Certamente há quem compartilhe do entendimento de que não importa o fornecedor, mas sim os interesses do consumidor, por ser hipossuficiente, vulnerável etc. Ocorre que tal raciocínio, com a devida vência, é vesgo e gera conseqüências de estilingue.

Não tenho a menor dúvida de que caso meu temor se materialize, tornando-se prática as “perdas” e “roubos” de celulares, as empresas deste ramo suspenderão a ineficaz cláusula de fidelidade, levando-se consigo os inúmeros benefícios propiciados aos consumidores; ou que tal custo seja finalisticamente arcado pelo próprio consumidor, com o encarecimento dos serviços. Ou seja, o que hoje parece alentador voltar-se-á contra os próprios consumidores.

Costumo tentar apresenta soluções aos problemas que proponho, mas tal tarefa é difícil no presente caso, pois, como dito anteriormente, a decisão mencionada gera sensações antagônicas neste blogueiro.

Creio, contudo, que a decisão do STJ, na mesma linha de determinar a redução da multa apenas pela metade (já que a desoneração total seria iníqua), poderia haver considerado o receio aqui exposto, determinando, por exemplo, que não haveria a obrigatoriedade de que o novo aparelho a ser entregue pela fornecedora fosse da mesma marca e modelo do anterior, podendo ser bem mais simples, com o fito de desonerar um pouco o prejuízo do fornecedor, distribuindo-o entre os partícipes da relação; ou que com a entrega de um novo aparelho renovar-se-ia (ainda que proporcionalmente) o período de fidelidade, fazendo com que tal dispêndio do fornecedor não seja a fundo perdido.

7 comments to Avanço ou Retrocesso?

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Uma das frases jurídicas que mais me impressiona é a que diz: “Quando a Lei ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora a Lei”. Isso também é verdade quando a lei ignora a realidade econômica. Esse post me faz lembrar da lei da meia-entrada para estudantes em shows e espetáculos. Em alguns shows, estudantes representam mais de 80% do público. O que fazem os promotores? Estipulam como valor nominal do show o dobro do valor que verdadeiramente querem cobrar. A “meia” é o valor real da entrada, e a “inteira” custa o dobro. Mas aí eles vendem “meia” para qualquer um e não fazem qualquer fiscalização na entrada o espetáculo. O único efeito dessa lei protecionista mal-feita foi a de – paradoxalmente – aumentar o custo para quem compra inteira, e aumentar o lucro do produtor. Vislumbro que algum fenômeno semelhante deve ocorrer com a aplicação desse precedente à vida real.

    Parabens pelo post.

  • Prezado Ney,
    Tomei conhecimento hoje do bLex, e logo me deparei com o seu post que passo a comentar. Aproveito para recomendar meu blog (http://papolegal.wordpress.com.br), onde postei esta notícia, porém sem tecer maiores comentários.
    Vejo que, no Brasil, temos um problema grave com relação à efetividade das normas. A norma não pode pressupor a má-fé e, posto isso, não se faz um controle posterior quanto à sua efetividade. Atente para os seguintes detalhes:
    1) O custo de um aparelho, para as operadoras, é muito abaixo daquele do comércio. É claro que sempre há a necessidade da contrapartida para que se verifique o investimento, mas partamos do pressuposto de que a oneração é sempre bastante inferior àquele valor de retorno que se espera com a fidelização.
    2) Nada impede que as operadoras realizem um controle sobre os celulares cadastrados, impedindo que os mesmos sejam “desbloqueados” por terceiros. Entretanto, ao que parece, parte-se sempre do pressuposto de que ninguém é confiável (ou é?): consumidor, a própria operadora, as demais operadoras, e por aí vai.
    Concluindo: alguém deverá “pagar o pato”. Sobrou pro empresário. Mas por que este não investe em um controle simples, em conjunto com seus concorrentes, a fim de prevenir a fraude? Não seria mais leal e, a longo prazo, proveitoso, que investir no “toma lá dá cá”?
    Espero ter me feito compreender.
    Abraços.

  • Ney Bastos

    Caro Arlindo,

    Primeiramente gostaria de agradecer sua visita e comentário, pois o objetivo do blog é o fomento à discussão jurídica.

    Especificamente quanto aos seus comentários, com a devida vênia e sem a pretensão de ser o dono da verdade, acredito que os mesmos partam de uma premissa equivocada, a de que no choque de interesses entre fornecedor e consumidor, aquele deve pagar o pato, visto que o único caminho realmente viável é a repartição dos prejuízos, conforme foi proposto no blog, pois a imposição exclusiva ao fornecedor de tal ônus, certamente se voltará contra o consumidor, que finalisticamente seria quem financiaria os investimentos no controle dos bloqueios dos ceculares, por exemplo, conforme proposto em seu comentário.

    Trata-se de uma readequação econômica que certamente ocorreria, pois os serviços encareceriam aos consumidores em geral com o fito de custear tais controles.

  • Caro Ney,
    Talvez eu não tenha realmente me expressado muito bem nessas poucas linhas. Quando vi a notícia no portal do STJ, passei a analisar exatamente sob o ângulo que você utilizou em seu post, o que, a meu ver, vem de um argumento interessante, pois não parte da análise pura das regras jurídicas, mas também sob o aspecto econômico.
    Não sei se é de seu conhecimento, mas o Direito norte-americano tem forte embasamento na Economia. Ainda não tive a oportunidade de pesquisar mais a respeito, mas, se houver oportunidade, colocarei um post levando em consideração este aspecto, o que, a meu ver, você fez muito bem. Caso escreva algo, retorno para convidá-lo a ler e expor seus comentários.
    Apenas gostaria de destacar que, na verdade, não parti da premissa sobre quem “paga o pato”. Apenas raciocinei sobre a decisão do STJ, o que é fato. Mas a discussão, a meu ver, é longa, e acredito que você captou bem as nuances que decorrem da decisão.
    Forte abraço.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Arlindo,

    Dê uma olhadinha no seguinte post: http://blex.com.br/index.php/2009/analise/84

    Lá discutimos a questão da disciplina de Direito e Economia.

    No demais, a observação de ambos é relevante. É um enorme engano acreditar que o empresário é quem pagará por esta – e outras – alterações normativas e interpretativas. O economista americano Milton Freidman (vencedor do Premio Nobel) popularizou a frase “There is no such thing as a free lunch” (Almoço de graça não é algo que exista). Se o Estado interfere no modelo de negócio para determinar que uma benesse seja dada ao consumidor, a reação natural do empresário será a de imediatamente adaptar o modelo de negócio para que a benesse seja – direta ou indiretamente – subsidiada pelos consumidores. Por desenho do modelo capitalista, é o consumidor que sempre pagará a conta, de um modo ou de outro.

  • [...] Direito & Economia, e o Prêmio dos Empregados Por Ney Bastos O bLex em vários post tem enfrentando a importante ligação entre o direito e economia, inclusive eu próprio já analisei tal questão, quando do comentário da decisão do STJ a respeito de furto ou perda de aparelhos celulares que estivessem no período de fi…. [...]

  • Saulo Michiles

    Post interessantíssimo, a começar pelo título. É o tipo de decisão em que o senso comum nos leva a comemorar como um avanço. No entanto, todas as questões jurídicas que afetam diretamente (compartilho da visão que 99% das decisões jurídicas afetam, ao menos, indiretamente a esfera econômica) a esfera econômica têm consequências indiretas que são muito difíceis de serem percebidas, principalmente, pelo senso comum.
    Essas consequências foram muito bem abordadas no post, e complementadas no comentário do Dr. Daniel, quando se refere à política das meia-entradas. O mesmo poderia se dizer, sem entrar em maiores detalhes e para citar apenas alguns exemplos, das meia-passagens de ônibus para estudante, que claramente onera todos os outros usuários do sistema e da gratuidade das universidades públicas brasileiras, que fazem com que a sociedade, em sua maioria, paupérrima, pague a instrução Superior da minoria rica.
    Quanto ao tema específico da decisão, compartilho das sensações antagônicas do blogueiro, talvez tendendo um pouco mais para a discordância da decisão. Em primeira análise, uma boa saída seria a entrega de celular de baixo custo para a continuidade do contrato desde que limitados a um ou dois aparelhos por ano de contrato.

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