Arquivos

O Fim da Autocracia das Turmas Recursais

Até pouco tempo atrás as Turmas Recursais dos Juizados Especiais Estaduais eram órgãos jurisdicionais que, essencialmente, não se sujeitavam a qualquer instância revisora de suas decisões de mérito.

Isso porque, por desenho constitucional, não cabe Recurso Especial das decisões das Turmas Recursais. Cabe Recurso Extraordinário para o STF, mas é raríssimo que exista uma violação constitucional direta que autorize o manejo desse instrumento. Em sua esmagadora maioria, as questões postas à discussão em Juizados Especiais são de cunho infraconstitucional.

Também se assentou jurisprudência nos Tribunais Superiores de que não cabe Mandado de Segurança ao Tribunal de Justiça do Estado contra a decisão de mérito das Turmas Recursais. O Remédio Heróico só cabe nessa hipótese quando se aduz que a competência para o feito é da Justiça Comum, mas a Turma Recursal se nega a reconhecer esse fato.

Portanto, sem instância revisora da matéria de direito federal, as Turmas Recursais estavam livres para decidir como bem queriam. Mas graças a uma recente decisão do STF, isso mudou.

O problema apresentado pode parecer irrelevante. O juizado tem – via de regra – competência para feitos de até 40 salários mínimos e uma análise mais superficial leva à conclusão que não faz nenhum sentido importunar as instâncias superiores com esses pequenos feitos. Esta é uma visão míope do problema.

Acontece é que é muito comum que empresas respondam por centenas e até milhares de casos idênticos propostos em juizados. Digamos que uma empresa constrói um modelo de negócios baseado em dispositivo explícito da lei federal infraconstitucional. Por conta desse modelo de negócios, 100 consumidores ingressam em juízo, alegando que tal conduta seria ilegítima, e que a partir de uma interpretação principiológica do Código de Defesa do Consumidor, a citada lei federal não pode ser aplicada. Os casos são litigados em 1ª instância, e todos são recorridos às Turmas Recursais. Metade das Turmas do Amazonas entendem que a conduta é legal, diante do autorizativo expresso da lei federal. A outra metade aplica o entendimento ridículo de que o CDC autoriza o judiciário a ignorar todo o resto do direito positivo brasileiro, ainda que a outra lei seja mais nova e mais específica que o Código.

O cliente então te pergunta: O que ele faz é ou não é legal? Ele deve continuar? A resposta do advogado não é muito satisfatória: Depende da turma recursal, e prepare-se para perder 50% dos feitos, e ganhar outros 50%.

Claramente, a falta de uniformização nos Juizados Estaduais cria um grande problema na administração da Justiça e o problema é mais acentuado para empresas com atuação nacional, que tem que lidar com inúmeras Turmas Recursais Brasil afora, cada uma decidindo do jeito que quer.

Podemos citar também outros casos em que a falta da via recursal ao STJ teria sido problemática caso as Turmas mantivessem a decisão do juiz de 1º grau. No primeiro caso um cliente estava sofrendo constrição patrimonial de R$ 815.000,00 por conta de um caso que tramitava em juizado especial. Noutro caso, o julgador de 1º grau disse com todas as letras que reconhecia que o STJ impunha juros e correção ao dano moral desde a condenação, mas ele queria retroagir essa condenação ao suposto evento danoso. Em ambos os caso revertemos o problema na seara das Turmas, mas se não tivéssemos conseguido teríamos que pensar fora da caixa para procurar uma solução heterodoxa à questão.

Nos Juizados Especiais Federais existe a figura de uma instância quase-especial que é a Turma de Uniformização, cuja missão é exatamente de uniformizar a interpretação da lei federal em todo os sistema federal de pequenos feitos. Na esfera dos Juizados Estaduais, tramita no Congresso Nacional proposta legislativa de criação de órgão semelhante , mas o fato é que hoje esse órgão não existe.

Ou melhor, não existia.

O Supremo Tribunal Federal finalmente enxergou a dimensão do problema. Vislumbrou tudo isso que acabei de descrever e chegou à conclusão que é um absurdo causado por um vácuo jurídico. Mas o Supremo fez melhor: desenhou uma engenhosa solução para o problema.

Ao decidir os Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário 571572 o Supremo Tribunal Federal decidiu que o STJ tem missão constitucional de garantir uniformidade da aplicação da lei federal infra-constitucional em todo o país. Assim, por mais que não caiba Recurso Especial das decisões das Turmas, se essas decisões violarem a jurisprudência do STJ quanto à lei federal, a parte pode propor Reclamação perante o STJ para garantir a uniformização.

É bem verdade que os ministros do Supremo : i) em essência legislaram uma solução por conta da omissão legislativa, fazendo dessa reclamação um sucedâneo recursal um verdadeiro fruto do Direito Pretoriano; e ii) alargaram os contornos dantes conhecidos da Reclamação. Antes dessa decisão, a Reclamação se prestava para lidar com casos pontuais em que havia usurpação de autoridade do Tribunal, e não como forma de debater matérias jurídicas.

No entanto acho que a decisão do Supremo, imperfeita como for, teve o louvável propósito de criar uma solução pragmática para um problema real que assolava empresas de todo o Brasil, e que dantes não tinha qualquer solução positivada. E por isso que aplaudo a decisão como exemplo de aplicação prática de pensamento lateral. O STF encarou o problema de modo criativo, e por conta disso deu aos jurisdicionados uma forma de combater a autocracia das Turmas Recursais.

A decisão ainda não foi publicada. Quando for, a disponibilizaremos na íntegra aqui no bLex.


10 comments to O Fim da Autocracia das Turmas Recursais

  • Marcelo Augusto

    A decisão, do mesmo STF, no sentido do descabimento de MS contra decisão oriunda de Juizado Especial é lastimável e deverá ser revista em virtude do advento da nova lei do MS.

    Enquanto isso não ocorrer, a via da reclamação se apresenta importantíssima. Aguardo o inteiro teor da decisão.

  • Enysson Barroso

    Dr. Daniel, o STJ recebe a Reclamação em que efeito? Será que o acordão da Turma Rcursal não irá transitar em julgado e partir para a fase executória?

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Enysson,

    A pergunta é relevante e certamente é apenas um dos problemas práticos que decorrerem dessa situação inusitada. O fato é que o STF mudou a feição da reclamação, transformando o que era um mero sucedâneo recursal, utilizável em casos pontuais de violação de autoridade ou usurpaçao de competência de tribunias , num verdadeiro recurso de fundamentação vinculada (o fundamento da reclamaçao deve ser violação à jurisprudência do STJ). Nesse sentido, realmente não dá para adivinhar como ocorrerá o processamento dessa novel reclamação. Acredito, no entanto, que na pior das hipóteses, é possivel manejar cautelar incidental à reclamação para imprimir-lhe efeito suspensivo. Neste início, sem regulamentação própria, é certamente o que eu faria.

    Ótima pergunta.

  • Marcelo Augusto

    Partindo-se da inafastável premissa de que o STF não admite reclamação contra decisão transitada em julgado, me parece razoável que a mesma deva ser interposta antes da preclusão máxima. O relator pode conceder liminar em sede de reclamação, conforme expressa previsão do RISTF.

  • [...] Reclamação Contra Turmas Recursais dos Juizados Por Daniel Fábio Jacob Nogueira Já tínhamos noticiado aqui no bLex a decisão do STF que, incidentalmente ao julgamento de um processo, chegou à conclusão que seria missão [...]

  • jose rodrigues

    A 1ª Turma do Colegio Recusal de Osasco condenou o recorido vencido no recurso.
    Neste a Turma vilou lei federal (Lei 9.099/95); não recurso especial, caberia recurso extraorinário ?

  • Eponina Souza

    Dr. Daniel,

    como fica a mesma questão no juizado especial federal? especificamente no direito previdenciário. Por exemplo, a lei 8.213/91 não constinha o instituto da decadência, sendo criado somente na edição da medida provisória nº 1.523-9/1997. Portanto, inaplicável aos benefícios concedidos anteriormente a essa modificação, conforme ampla jurisprudência do STF e STJ, TRFs. Porém a TNU – Turma Nacional de Uniformização se vale da Lei de processo administrativo – art. 54 lei 9784/99 para considerar válida a decadência de direitos adquiridos anteriores à referida medida provisória POR ANALOGIA à jurisprudência do STJ em cotejo especificamente ao processo administrativo. No caso não cabe pedido de uniformização de jurisprudência dos juizados porque existe posição a favor da TNU. Não cabe recurso extraordinário, porque a discussão girou em torno de lei federal infraconstitucional(porém REsp. é inviável). cabe MS – à própria turma recursal mas a turma jamais vai reformar a sua decisão.A pergunta: É APLICÁVEL de alguma forma A RECLAMAÇÃO TAMBÉM AOS JUIZADOS FEDERAIS?

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Eponina,

    Em suma, não. A reclamação foi criada exatamente como mecanismo para possibilitar a uniformização jurisprudencial dos Juizados Estaduais, que não contavam com algo análogo à TNU Federal. Ora, se já existe na seara federal um órgão com a função uniformizadora, a reclamação ao STJ perde sentido. Aliás, quando da criação dessa reclamação, o próprio STF deixou claro que o instrumento não seria perpétuo: Só se admitiria reclamação enquanto não que fosse criado algum colegiado com a missão de uniformizar a jurisprudência dos Juizados estaduais.

  • Eponina Souza

    Dr. Daniel

    pois é, a dúvida surgiu exatamente porque a TNU firmou entendimento divergente do STJ. Sendo assim caberá mesmo é o pedido de uniformização no próprio STJ. Consegui localizar jurisprudência a respeito.

    muito obrigada,
    Eponina

Leave a Reply

 

 

 

You can use these HTML tags

<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <strike> <strong>