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O enxadrista e a casa de strip-tease


O Jornal A Tarde flagrou, no Tribunal de Justiça da Bahia, um desembargador supostamente jogando xadrez durante uma sessão do pleno. Digo supostamente porque, segundo matéria no site do Conselho Federal da OAB, o magistrado disse que não estava jogando xadrez, mas que tinha “por curiosidade” aberto a página antes da sessão. Diz a matéria, no entanto, que a sequência de fotos mostra movimentos diferentes de um jogo em curso.

Outrossim, a julgar pelo relato da matéria, não se tratava de sessão de julgamento; aparentemente, os desembargadores debatiam matéria administrativa, incluindo, por ironia, uma pesquisa que apontava o TJ/BA como pior do país.

O que interessa para mim, especificamente, não é o fato em si, mas sim um problema – pragmático e jurídico – mais profundo que é ilustrado pela imagem do (suposto) Desdor. Enxadrista.

Para entender o que quero dizer, gostaria de apresentar aos leitores o peculiar caso do cabaré adulto denominado The Blue Zebra (A Zebra Azul).

Os proprietários dessa casa de strip-tease, que operava na cidade californiana de Los Angeles, achavam que precisavam de uma autorização especial do município para alterar as regras de zoneamento urbano a que estavam submetidos. As regras vigentes diziam que o estabelecimento poderia operar das 6 da tarde até as 2 das manhã. Segundo os proprietários, o The Blue Zebra precisaria operar a partir das 11:00 da manhã, pois precisavam “operar por horas mais longas para conseguir realizar lucro”.

A autoridade administrativa responsável pelo zoneamento urbano de Los Angeles deferiu o pedido, mas os vizinhos e líderes comunitários não gostaram nem um pouco e recorreram administrativamente da decisão ao Conselho Municipal de Los Angeles.

Quando do julgamento do recurso administrativo, os membros do Conselho Municipal de Los Angeles não pareciam muito interessados no caso. O advogado do cabaré realizou sustentação oral, mas quase ninguém prestou atenção. Tinha conselheiro no celular, tinha conselheiro conversando um com o outro, tinha conselheiro lendo papeis e processos não relacionados com o caso sendo discutido, tinha conselheiro conversando com o assessor, tinha até conselheiro comendo.

Há vezes em que os advogados que atuam perante nossos Colegiados de Justiça sofrem do mesmo problema. Não é raro perceber, em tribunais de todo o país e de todas as instâncias, que julgadores estão ao celular, lendo outros processos, conversando com assessores ou batendo papo durante sessões de julgamento. Numa oportunidade já soube de um julgador que estava cochilando. Não parece ser o caso do (suposto) Desdor. Enxadrista, pois não se noticia que estivesse prestando jurisdição. Se o Tribunal da Bahia estava reunido em sessão administrativa, cuidando de questões internas, realmente não me preocupa muito o fato de um dos membros do pleno estar ou não jogando xadrez.

Na minha análise é muito pior que o julgador esteja, por qualquer expediente, deixando de prestar atenção no julgamento de um processo. Especialmente me incomoda quando magistrados acham coisas mais importantes para fazer do que prestar atenção à sustentação oral do advogado. A sustentação oral é, em nosso sistema, o único momento em que o advogado pode formalmente apresentar suas razão aos membros do colegiados que não estão relatando o feito. É a única oportunidade processual que tem para, sucintamente, explicar os seus argumentos. A parte, por intemédio de seu advogado, tem o direito constitucional de ser ouvido, e isso inclui o direito de que os magistrados prestem atenção às suas razões.

Foi exatamente este o argumento que os advogados do The Blue Zebra se socorreram para combater a decisão do Conselho de Los Angeles. Ingressaram em juízo argumentado que a sessão de julgamento do seu recurso administrativo era nula por conta da falta de atenção dos julgadores quando da sustentação oral.

O caso, denominado LACY STREET HOSPITALITY SERVICE, INC. v. CITY OF LOS ANGELES, foi decidido pela Corte de Apelos do Estado da Califórnia. O Tribunal Californiano entendeu que i.) ao julgar o recurso administrativo, o Conselho Municipal esta exercendo função jurisdicional e ii) compõe o princípio fundamental do devido processo legal a regra que estabelece que “Aquele que decide deve ouvir“. A decisão do Conselho foi anulada, e o Tribunal determinou que o caso fosse julgado de novo no Conselho Municipal, exigindo, em essência, que o julgadores prestassem atenção aos argumentos das partes.

Por mais que esta seja uma decisão do direito comparado, a causa de decidir foi, em essência, o princípio do devido processo legal, que também tem assento constitucional no Brasil. Tanto nos Estados Unidos quanto aqui, a máxima de que o julgador deve prestar atenção nas razões da parte é parte integrante de nossa concepção de Estado Democrático. Pessoalmente, nunca tive que recorrer a este argumento para invalidar um julgamento, mas já presenciei sessões em que colegas poderiam muito bem evocar essa proteção constitucional. De qualquer modo, seria muito interessante ver como um caso desses seria julgado aqui no Brasil.

Para quem está interessado a decisão original, em inglês, do caso do The Blue Zebra está disponível neste link.


4 comments to O enxadrista e a casa de strip-tease

  • Muito interessante essa decisão. Aproveito para indagar: se tal precedente fosse aplicado no Brasil, quantos julgamentos restariam intactos?

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Marcelo,

    A partir de hoje vou prestar atenção em quantos julgamentos essa regra poderia ser suscitada. Tenho impressão que não será um percentual desprezível….

  • Emilio de Moura

    Consta que um reporter acompanhava uma importante votação no congresso nacional quando viu dois deputados, num canto, conversando baixinho, com a mão na frente da boca.
    sorrateiro, o reporter se aproximou e ouviu o seguinte diálogo:
    - A 3
    - água!

    estavam jogando batalha naval!
    grande abraço e parabéns pelo site.

  • Carlos André Vieira

    Nobres colegas é triste, contudo real, que o princípio da impessoalidade não impera. Os interesses são marcados para grande fatia no ganho pessoal, pois onde isso não ocorre não há interesse.
    Parabéns pelo blog!

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