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O lado obscuro da Meta 2

O Conselho Nacional de Justiça estabeleceu, em conjunto com os tribunais brasileiros, 10 metas que o Judiciário deve atingir em 2009. Ninguém ouve falar de nove dessas metas, mas todo mundo que tem algum contato com a Justiça já conhece a já célebre Meta 2: “Identificar os processos judiciais mais antigos e adotar medidas concretas para o julgamento de todos os distribuídos até 31.12.2005 (em 1º, 2º grau ou tribunais superiores)”.

Segundo o CNJ “O objetivo é assegurar o direito constitucional à “razoável duração do processo judicial”, o fortalecimento da democracia, além de eliminar os estoques de processos responsáveis pelas altas taxas de congestionamento”.

Em tese, é uma idéia fantástica. Na prática, está me apavorando.

À toda evidência, o TJ/AM acordou para a Meta 2 em agosto deste ano. Fez um levantamento e constatou que existem no Amazonas 100 mil processos que se enquadrariam na Meta 2. De acordo com o Tribunal, cerca de 30% desse número é lixo virtual provocado por má-alimentação do (todo-poderoso) sistema.

Assim, a missão do Tribunal é simples: Julgar 70.000 processos em 5 meses.

A minha primeira preocupação é matemática. Presumindo que tais processos estejam com perfeita distribuição estatística entre os quase 140 magistrados de nosso Estado, para que se atenda à Meta 2 é necessário que cada julgador decida definitivamente seis processos por dia, todos os dias, de segunda a sexta, de hoje até o final do ano.

Seis sentenças por dia é um trabalho hercúleo. Uma sentença não é um simples despachozinho. O Juiz precisa ler e estudar os autos, enfrentar os argumentos das partes, analisar a matéria probatória para então decidir o mérito do feito. Mesmo que juiz só tivesse que cuidar da Meta 2 já haveria um enorme problema quanto à qualidade da prestação jurisdicional que ele é capaz de prestar diante o irreal volume de trabalho que o aguarda. Pior ainda se lembrarmos que não é dado ao juiz deixar de despachar os processos que não são da Meta 2. As audiências, liminares, decisões interlocutórias dos processos pós-2005 também merecem a atenção do magistrado.

O temor que tenho é que, com a aproximação do prazo final para que o TJ/AM preste contas da Meta 2 ao CNJ, os processos passem a ser julgados de afogadilho, e sejam extintos de qualquer jeito apenas para que possam ser computados na estatística. Julgar de qualquer jeito não é fazer Justiça, e o jurisdicionado não quer apenas que seu processo seja julgado. Quer sim uma decisão célere, mas também quer que a jurisdição prestada seja essencialmente justa.

Quanto à minha segunda preocupação, espero realmente que seja infundada. Quando li a matéria do TJ/AM sobre a Meta 2 (linkada acima) um trecho me saltou aos olhos:

João Simões apresentou o cartaz que está sendo usado na campanha publicitária da Meta 2 e os selos processuais que serão utilizados para identificar os processos que serão alvo do programa. Ele explicou também como deverá funcionar o que ele convencionou chamar de “Mutirão de Sentenças Meta 2″. Os processos em fase de distribuição e julgamento serão encaminhados para uma sala no fórum Henoch Reis onde ficarão à disposição dos juízes que quiserem trabalhar depois do expediente . “Todos eles poderão trabalhar nesse mutirão, independente de pertencerem à área criminal, cível ou ao juizado especial”, complementou o desembargador.

Minha esperança é que o texto acima seja um erro crasso da assessoria de imprensa do Tribunal. Qualquer juiz pode ir para uma salinha, pegar um processo do monte, e o sentenciar ?!?!?

Mesmo sem discutir o Princípio da Identidade Física do Juiz (que exige, excetuadas certas hipóteses, que o juiz sentenciante seja aquele que participou da audiência de instrução), o procedimento descrito sofre de defeito de índole Constitucional: viola frontalmente o princípio do Juiz Natural. A Constituição me assegura, enquanto parte, o direito de ser julgado pelo magistrado escolhido de acordo com regras pré-estabelecidas. Tais regras foram respeitadas quando ocorrida a distribuição do feito. Permitir que outro magistrado venha a proferir a sentença desses autos é uma subversão inaceitável de uma proteção pétrea de nosso sistema republicano. As possíveis ramificações dessa regra da salinha são preocupantes, pois a nulidade absoluta atingiria a todos as sentenças proferidas dessa forma. Repito: espero que seja apenas um equivoco da equipe de comunicação.

Entendo mais do que ninguém a necessidade de celeridade no julgamento de processos, mas acho que solução correta não deve ser paliativa e tampouco com jogos de cena do tipo “julgaremos 70.000 processos em cinco meses”. O princípio da reserva do possível também tem aplicação no âmbito da Política Judiciária. Mais digno seria se o Judiciário i) Reconhecesse que não tem capacidade de atender a tal Meta 2; ii) criasse um programa realista, e permanente para, num cronograma factível e sem desrespeitar a Constituição Federal, diminuir o estoque de processos antigos e iii) tomasse medidas permanentes para evitar que no futuro os processos parados alcancem números tão alarmantes.

Adianta aos magistrados trabalhar feito loucos para que em 1º de Janeiro de 2010 tudo volte ao ritmo de sempre? Por que não realizar verdadeiras alterações estruturais, para sanear a fonte de todo o problema? Por exemplo: como é que uma Justiça que tem entre 100.000 e 70.000 processos com mais de 4 anos de idade se dá ao luxo de funcionar apenas até as 14:00? Não adianta correr da sala para a cozinha para julgar feitos a rodo, e permitir que em quatro anos haja novo estoque de dezenas de milhares de feitos atrasados.

Rui Barbosa disse uma vez que “Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade.“. O que não disse ilustre advogado – decerto por não ser um problema da sua era – é que a recíproca também é verdadeira: justiça atabalhoada também não é Justiça.

12 comments to O lado obscuro da Meta 2

  • felix ferreira

    Caro dr. Daniel,

    Parabéns pelo sucesso do blog e pelos artigo acerca da chamada META 2.

  • Dr. Gustavo

    Pôxa!. Até terminar de ler este post tinha absoluta certeza que a Meta 2 era algo positivo para o judiciário. Não sei como é em outros estados, mas aqui no maranhão cada juiz que tiver menos de 100 processos de meta 2 tem que se virar sozinho. Se tiver mais, um bocado de assessores voluntários da procuradoria e da OAB vão ajudar nas sentenças. Nunca tinha pensado no problema do Juiz Natural, e parando para pensar, é um absurdo mesmo. Mas será que os Tribunais Superiores vão ter coragem de anular as decisões nesses processos Meta 2?

  • Esperando Justiça

    Desculpe Dr. Daniel, mas acho que o senhor errou com o argumento do artigo. Tenho um processo que tá na Justiça desde 2002 e até agora não julgaram. Pouco me interessa o juiz que vai julgar, o que importa é que agora ele vai ser julgado. Graças a Deus pelo CNJ, finalmente vou ter minha causa decidida esse ano.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Em relação a este último comentário, esteja certo que entendo a frutração. No entanto não podemos ignorar preceitos constitucionais para resolver problemas que – convenhamos – foram criados pelo próprio judiciário, por conta das décadas de indiferença ao direito que a parte tem de receber prestação jurisdicional célere. Os problemas que podem nascer por conta dessa aparente “regra da salinha” são dos mais variados. Temos que lutar, sim, para que os processos em atraso sejam julgados, mas é mais importante lutar para assegurar que doravante nenhum processo seja esquecido nas prateleiras do fórum. Eu advogo num feito que tem mais de 20 anos de idade; passei a patrociná-lo a uns dois anos, e uns 3 meses depois ele foi sentenciado em primeiro grau! Ainda está em fase de recurso aqui no TJ. Os autores já até morreram e seus herdeiros estão todos com idade avançada. O absurdo é que isso tenha acontecido. Mas o problema levou décadas para ser criado e não se pode realisticamente buscar solucioná-lo em 6 meses de trabalho intensivo.
    O primeiro passo – de reconhecer a existência do problema – já ocorreu. Agora resta se esforçar para resolvê-lo de modo sistêmico e não esporádico.

    Um abraço, e obrigado pelo comentário.

  • Julio

    Juiz Natural? O Juiz abandona um processo por 5 anos e ainda é Juiz? Natural?
    Caia na realidade Dr. O contribuinte quer é solução, e não discussões filosóficas.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Júlio,
    O problema é um pouco maior do que filosófico. Presumindo que a “regra da salinha” é como descita na notícia do TJ/AM, a parte que sair derrotada após esse julgamento por juiz que não é do feito pode muito bem suscitar a nulidade absoluta dessa decisão. Então o processo vai passar uns cinco anos em instâncias recursais para discutir esse aspecto processual. Se o vencido convencer o STF ou STJ da nulidade do procedimento da salinha, sabe o que vai acontecer? A decisão vai ser invalidada, e vai retornar ao juiz de 1o grau para nova sentença – tendo a parte perdido mais cinco anos.
    No processo judicial sempre tem um vencido. Se as regras processuais não são obedecidas, o vencido faz uso dessas falhas para protelar a decisão final.

    Mais uma vez reitero que entendo que o problema existe e deve ser resolvido, mas a solução deve respeitar os ditames constitucionais.

    Daniel

  • Ney Bastos

    A violacão ao juizo natural esta acompanhada do risco inerente de que juizes impedidos e suspeitos se beneficiem da brecha deixada e julguem tais processos. Os comentários deixados reforçam a necessidade de que o judiciário passe por uma reforma multifacetaria, sendo certo, contudo, que os atalhos sempre tendem a ser a pior ideia.

  • Jean Carlos Tourinho

    Post Impecável. Expõe o problema, aponta soluções e mostra um raciocínio invejável. Parabens. Você devia fazer concurso para a magistratura.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Jean. Obrigado pelo comentário, mas felizmente ou infelizmente, sou advogado por vocação. Nunca fiz concurso público, pois meu projeto de vida realmente é o de advogar pelo menos por mais algumas décadas.

  • [...] dez metas estabelecidas a que mais chama atenção, sem sombra de dúvidas, é a famigerada Meta 2, já discutida antes neste bLex, a qual institui que todos os processos distribuídos até dezembro de 2005 devem ser julgados até [...]

  • Oliveira

    A META 2 vai gerar a META 3, 4, 5…
    Isso porque simplesmente deixaram os processos posteriores de canto para tentar cumprir a meta do CNJ. Tenho uma demanda cuja audiência inaugural ocorreu em 24 de novembro de 2008.

    De lá pra cá, nenhum andamento foi dado pelo juiz. Cheguei ao constragendor petitório de “impulso oficial”.

    O engraçado é depois encontrar o magistrado e o ex-advogado da outra parte jantando na maior amizade.

    Eu vou desistir de advogar.

  • [...] referida Meta, em que pese a grandeza de seu objetivos, sempre gerou preocupações nos membros deste blog (conforme já externado em posts anteriores), no sentido de que na maneira em que foi concebida poderia até mitigar um dos fatores da [...]

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