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O Impressionante Poder da “Portaria”

O Superior Tribunal de Justiça publicou, com pompa e circunstância, a seguinte notícia em seu sítio oficial:

STJ amplia acesso de advogados a cópias dos processos


Assinada recentemente pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Cesar Asfor Rocha, a Instrução Normativa n. 3, que regulamenta os procedimentos judiciais e administrativos do STJ, ampliou a prerrogativa dos advogados que atuam no tribunal da Cidadania. A partir de agora, mesmo o advogado não constituído regularmente nos autos pode solicitar cópias de processos, desde que os mesmos não estejam pautados para julgamento. (…)

A tal notícia, que certamente será ecoada pelos meios leigos de comunicação, é realmente intrigante. O “Tribunal da Cidadania”, último defensor do direito infraconstitucional, alardeia pela mídia que baixou um ato normativo e “A partir de agora, mesmo o advogado não constituído regularmente nos autos pode solicitar cópias de processos, desde que os mesmos não estejam pautados para julgamento“. A questão é que desde 1994 está em vigor no Brasil a LEI de número 8.906, que institui o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e estabelece que:

Art. 7º. São direitos do advogado: (…)XIII – examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos;

Portanto o tal direito não passou a existir no STJ “a partir de agora” por conta de uma portariazinha. É um direito assegurado por lei federal há mais de quinze anos.


Quando se é aluno de direito, se aprende que um teórico do direito chamado Hans Kelsen idealizou um uma pirâmide normativa, que classifica as normas de acordo com a sua importância no ordenamento jurídico. Ao topo da pirâmide kelseniana se situa a Constituição Federal, seguida de Emendas Constitucionais, Leis Complementares, Leis Ordinárias, etc…

O exemplo de pirâmide normativa do gráfico aí de cima foi emprestado de algum país latino-americano (Quando tiver um tempinho faço uma do direito brasileiro).

De qualquer modo, como se vê, Atos Normativos tais como portarias, instruções normativas, provimentos e similares se encontram mais perto da base do que do ápice dessa estrutura jurídica. Portanto, em tese, uma regra que está escrita na Constituição vale muito mais do que aquela inserida numa reles portaria.

Na prática, não é bem assim. Aliás, essa tal pirâmide apenas prova de modo incontroverso que Kelsen nunca andou por qualquer repartição pública brasileira, e portanto nunca experimentou o poder sem paralelo de uma portaria.

Quando mais elevada a norma na pirâmide kelseniana, e portanto mais removida do contato direto com o funcionário da repartição, menos importância ela passa a ter para o burocrata. Nem tente evocar um direito constitucional ou legal se tal direito tiver em confronto com “a portaria”.

O caso acima do STJ não é, nem de longe, um caso isolado em que um direito só passa mesmo a ser respeitado “a partir de” edição de ato normativo administrativo. Tem um exemplo da Justiça local que eu acho precioso.

Em 2004, a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Amazonas editou o Provimento 109/2004, que tem o seguinte artigo único:

Art. 1º. Recomendar aos juízes de direito que, ao emitirem ordens judiciais, observem o disposto no art. 200 do Código de Processo Civil, e, especificamente, quando se tratar de atos processuais a serem realizados fora dos limites territoriais de sua jurisdição , devem estes ser requisitados mediante carta precatória, estas que, poderão, conforme o caso exigir, serem transmitidas pelos modos previstos no art. art. 205 do estatuto processual civil.

Pergunto. Por que cargas d’água precisa o Tribunal baixar um provimento cujo único objetivo é dizer para que os juízes os juízes observem o que está disposto na Lei Federal? Se a regra está na lei, já deve ser cumprida. Agora pergunte: os juízes do interior passaram a observar mais o art. 200 do CPC antes ou depois do tal provimento? A auto-evidente resposta só demonstra mais uma vez o “poder da portaria”. Se a regra está na lei ou na Constituição, o burocrata até para consegue a ignorar. Mas se estiver também numa portaria…


7 comments to O Impressionante “Poder da Portaria”

  • Danilo Germano

    O Dr. Érico Desterro fala que Constituição ninguém respeita, lei complementar o pessoal já dá uma lida, lei ordinária tem a peculiaridade de “pegar ou não pegar”, mas do apito do guarda todo mundo tem medo e acata.

    As portarias são impressionantes, criam normas, alteram lei do processo administrativo, fere o nosso Estatuto, etc.

    Lamentável.

  • Thiago Maia

    O professor Luís Roberto Barroso ao tratar do triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil também aborda essa situação. Ressalta o ilustre publicista que houve um tempo em que a portaria e o aviso ministerial eram mais respeitados do que a Constituição Federal. Ao que parece isso ainda é realidade em algumas repartições públicas desse país.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Danilo,

    Fantástico o exemplo do apito do guarda. Prova concreta de que quanto mais reles ato administrativo, mais importa para o cotidiano da maioria das pessoas.

    Thiago,

    Pior ainda quando a “portaria” está em contradição com a lei ou a Constituição. Nessa hipótese o burocrata irá sempre privilegiar a ordem do chefe (Portaria) em detrimento ao estado democrático de direito.

  • Em 10.06.2009 eu já havia manifestado o meu inconformismo com a restrição que vigorava aanteriormente:

    http://marcelo1971.wordpress.com/2009/06/10/digitalizacao-de-processos-no-stj-restringe-a-publicidade-dos-atos-processuais/

    É realmente lamentável esperar pela edição de uma portaria para que a publicidade (que decorre de um princípio constitucional) possa prevalecer.

  • Enysson Barroso

    Pior do que as portarias são os imundos recados impressos em papel A4 e fixados nos cartórios como ato legislativo “infratudo”, mormente nas portas onde restringem a entrada de advogados nas varas e gabinetes com se alí fosse a suite presidencial dos serventuários da justiça. É realmente de irritar, particularmente, mas com educação, ingnoro o “comunicado” e entro. Certa vez cheguei a ser barrado, aí tive que repudiar e expressar de forma bem clara os direitos e prerrogativas dos advogados. As vezes é extremamente chato agir assim, mas em certas ocasiões é imprescindível !! Dentre outras melhorias que esperamos da OAB/AM, essa é uma das que precisam de um basta, os nossos direitos devem estar explícitos e incutidos nas mentes dos colegas serventuários, e acima de tudo: RESPEITADO. Com essa oportunidade, suplico aos meus colegas de profissão que não deixem esses e outros absurdos passarem em branco, abram reclamações na ouvidoria do tj, peticionem para a nossa Ordem e até a criação de um baixo-assinado é válido, o que não vale é termos que mendigar para trabalhar com dignidade. Já ia esquecendo… outro dia solicitei cópia do processo onde não estava atuando e nem iria atuar, mas precisava da cópia, a Diretora da vara disse que sabia que eu tinha direito de tirar as cópias mas se recusou a emprestar os autos para xerocopiar, disse ainda que ela tinha responsabilidade sobre os processos sob sua guarda. Pergunto: responsabilidade ou incompetência funcional? Agora, dorme com um barulho desse !

  • Fana

    Prova maior, Danilo… é o guarda que fica na entrada do forum… ele manda e desmanda ali, aliás, manda mais que juiz!
    Brincadeiras “fora a parte”[como dizem por aí], isso é o mesmo que chover no molhado…
    E depois dizem que advogado está no mesmo “patamar” que juiz e promotor… ah, conta outra vai…
    E digo mais, muitas vezes não adiata nada puxar a carteira de advogado e mostrar o que está escrito sobre os direitos do advogado, muitos até dão risada, sabia? Já fiquei feito besta usando o meu direito que de nada adiantou… pois o funcionário da vara achou que eu estava fazendo valer o meu “jus esperniandi”… mas não era, era meu direito mesmo… ver o processo mesmo que sem procuração… de nada adiantou, palavra!

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