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Quis Custodiet Ipsos Custodes? (Parte II)

Nota: Este post é a continuação de uma discussão sobre a falta de limites na atuação do Ministério Público que começou com o Quis Custodiet Ipsos Custodes? (Parte I). Naquela oportunidade, se argumentou, em síntese, que o atual sistema legal provoca ineficiência no órgão ministerial, por obrigá-lo ajuizar ações que não atendem a uma análise de custo x benefício social.

Se não é se deve culpar pessoalmente os membros do Ministério Público pela ineficiência sistêmica da instituição (que é imposta pelo atual ordenamento jurídico), situação completamente diferente se configura quando analisados os limites da sua atuação responsável.

Quando um advogado empresarial se prepara para mover uma demanda, tem obrigação de julgar as consequências de seus atos em múltiplas dimensões. Pensa na sucumbência a que pode sujeitar seu cliente, se afasta daquilo que pode ser considerado litigância de má-fé, raciocina em termos da responsabilidade que deve evitar atrair para si e para seu cliente com uma ação temerária. Só elenca como réu de suas demandas quem possa – com razoável certeza – ser juridicamente responsabilizado pelos fatos do caso.

Já o Ministério Público não tem que se preocupar com a medição de consequências. Se o Ministério Público é sucumbente, nada acontece. A aplicação de litigância de má-fé ao Ministério Público é evento judicial raríssimo (até por conta da presunção jurídica de boa-fé e a “quantidade de serviço” do MP). Para todos os efeitos práticos – excetuados os insuetos casos de provada atuação verdadeiramente maliciosa – o Ministério Público é irresponsável pelo resultado das ações que move.

Se ao promotor não é necessário analisar as possíveis conseqüências de suas ações, é natural que passe a pecar pelo excesso.

Vejamos o seguinte exemplo:

O cidadão A comete uma determinada conduta ilícita, auxiliado diretamente pelo cidadão B. O cidadão C não praticou a conduta, mas dela tinha conhecimento e nada fez para impedi-la. Já o cidadão D que nem mesmo sabia que uma conduta ilegal estava ocorrendo, prestou serviços lícitos a B
que podem ter sido úteis à prática criminosa. Por último, existe farta prova de que o cidadão Eque é uma pessoa pública – é amigo comum de A, B, C e D, os encontra socialmente, e conversa com eles pelo telefone quase todos os dias.

Se um advogado empresarial for contratado para mover uma ação, provavelmente nomeará como réus A e B. Em algumas situações, dependendo muito das circunstâncias do caso, e só depois de muito pensar sobre a possibilidade de êxito, incluirá C no pólo passivo.

Já o Ministério Público provavelmente manejará ação contra todos os 5 cidadãos. Não tem nada a perder, caso se prove no curso do feito que alguns dos réus são, de fato, inocentes. Caso a ilação em relação aos cidadãos D e E renda frutos, melhor ainda. Esta assertiva não é uma simples afirmação vazia. Recentemente, fomos procurados no escritório por uma pessoa que respeitamos imensamente. Trata-se de uma pessoa que goza de décadas de reputação ilibada tanto na sua atuação no serviço público, quanto no seu exercício de magistério na área jurídica. No convívio dos advogados do escritório com essa pessoa (antes de qualquer relação profissional) tivemos oportunidade de ver – na prática – que essa cidadã de bem não só prega a ética, mas também a pratica ferozmente no seu dia-a-dia. É uma pessoa seríssima, e por qualquer métrica, acima de absolutamente qualquer suspeita.

Pois bem. No passado, essa pessoa atuou como assessora jurídica de um órgão público, e lá cumpriu os seus deveres com diligência. Parte de suas obrigações consistia na elaboração de pareceres sobre os processos administrativos daquele órgão. Aparentemente, o Ministério Público acredita que os superiores dessa cidadã estavam engajados em práticas ilícitas, e moveu contra eles e contra as pessoas jurídicas beneficiadas uma ação de improbidade administrativa. Não satisfeito de perseguir os supostos comitentes da improbidade, o Ministério Público, à toda evidência, incluiu como réus daquela ação todos os servidores que atuaram nos processos administrativos suspeitos. Noticiam os advogados de outros réus do feito (nossa cliente ainda não foi citada) que a mencionada cidadã foi incluída no rol de réus da demanda unicamente porque elaborou um parecer jurídico num processo administrativo. Não existe qualquer prova que essa cidadã tenha cometido qualquer ilicitude, nem qualquer indício de que sequer sabia dos acertos de seus superiores. Há apenas a prova de que uma servidora cumpriu a sua obrigação funcional.

Nada obstante o MP, sem quaisquer reservas, a acusa de estar em conluio com os superiores para o cometimento de ilícitos. E só age assim por saber que é irresponsável por tal afirmação, ainda que desprovida do mais remoto fundo de verdade.

Não acredito que o Ministério Público ignore o peso que é imposto pela pecha de ser réu em ação de improbidade. A cidadã mencionada, por ser uma pessoa de bem, e de caráter íntegro, ficou absolutamente devastada ao ficar sabendo da notícia. O fato de se estar respondendo a ação dessa natureza, no olhar público, é muito mais relevante do que a presunção constitucional de inocência. Como é que essa cidadã, que hoje ocupa um cargo de confiança, vai explicar para a sociedade – e para que a nomeou para seu atual cargo – que esta ação é uma temeridade? Dizendo que é inocente, e está sendo injustiçada? Muito bem isso fará! Afinal, não é exatamente este o discurso adotado pelo pior dos saqueadores quando flagrado cometendo uma ilicitude?

Nota2: Este é um post de três partes. Na terceira e última parte do post, o raciocínio será finalizado e soluções serão propostas.

4 comments to Quis Custodiet Ipsos Custodes? (Parte II)

  • Rodrigo Dias

    Prezado Dr. Daniel

    Permita-me fazer uma comparação, guardadas as proporções.
    O Ministério Público quando toma esse tipo de medida, compara-se, sem dúvida alguma, ao Policial que aborda vários cidadãos no meio da rua à procura de um único criminoso. Em ambos os casos, os cidadãos têm invadidas às suas honras objetiva e subjetiva. Com toda a certeza, o pensamento comum ao nos depararmos com a atitutde descrita, no post e no exemplo em comento, são de que os reus/abordados cometeram algum crime/ilegalidade, ficando os direitos e as garantias individuais da pessoa humana, abrigadas na CR/88, jogados ao relento.
    Causa-me mais espécie ainda, é saber ambos trabalham para o mesmo fim: cumprimento da legalidade e no fazimento da justiça.

  • Marcos dos Santos Carmo Filho

    Isso é extremamente comum. O pior é quando o parecer é suficientemente diligente para detectar as irregularidades na conduta avaliada, sugerindo que sejam corrigidas ou que o ato não seja praticado, e, ainda assim, o profissional responsável e, às vezes, qualquer outra pessoa que tenha encostado no processo em que foi dado o parecer são incluídos na ação. Já vi casos piores, em que o Ministério Público interpreta um ato como sendo irregular e, por má-vontade ou pela exiguidade do tempo para analisar o caso, sequer propõe a ação contra o seu “A”, perseguindo apenas “E” ou “D”.
    Não há qualquer consideração à pessoa do acusado, que não recebe qualquer tipo de compensação ao final, seja pelo constrangimento, seja pelos gastos com sua defesa. Do ponto de vista do MP… “acontece”.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Rodrigo,

    Nem a propósito, o Naranjo publicou um post sobre a atuação da polícia exatamente nos moldes em que noticias. Link:
    http://diariodeumadvogadocriminalista.wordpress.com/2009/08/31/nao-tem-tu-vai-tu-mesmo/
    Ao que ele narra, foram prender o filho e como ele não tava lá, prenderam o pai mesmo.

  • Daniel Fábio Jacob Nogueira

    Marcos,

    E o mais peculiar disso tudo é que o parecer não é ato de decisão, mas sim ato de opinião. O parecerista é remunerado para opinar pelo assunto, mas é o gestor que tem a maior responsabilidade – e consequente remuneração – de arcar com o ônus da decisão. Interessante notar que o fato do gestor basear suas decisões em parecer jurídico da procuradoria NÃO é defesa para fins de improbidade ou no âmbito do Tribunal de Contas. Ou seja, o parecer não serva para escudaro gestor, mas (no entender do MP) para responsabilizar também o parecerista.

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